Por Abel L Packer e Solange Santos1
Acesso aberto aos artigos
Uma das práticas da Ciência Aberta que nos é familiar é o Acesso Aberto aos textos dos artigos disponibilizados publicamente na web, seja pelos periódicos na modalidade conhecida como Acesso Aberto Dourado ou pelos próprios autores em seus websites, em repositórios institucionais ou temáticos, logo após a publicação do artigo ou após um período de seis ou doze meses de embargo imposto pelo periódico, modalidade que e conhecida como Acesso Aberto Verde. O principal modelo de autofinanciamento ou comercialização utilizados pelos periódicos de acesso aberto dourado e a cobrança dos autores de uma taxa de publicação, popularizada internacionalmente como Article Processing Charge (APC). A maioria dos periódicos de acesso por assinatura publicam também parte dos artigos em acesso aberto com a cobrança de APC, modalidade denominada híbrida. Os valores mais frequentes da APC variam de US$1500 a US$5000.
Adotado pioneiramente há mais de 20 anos no Brasil pelo SciELO e em anos seguintes por 13 outros países (Figura 1) e consolidado globalmente como uma modalidade de comunicação científica, o Acesso Aberto sinaliza a viabilidade das demais práticas da Ciência Aberta, porém não sem desafios. Sua adoção generalizada enfrenta ainda forte resistência das editoras comerciais que buscam um modelo de negócios com retorno financeiro igual ou maior do que obtêm com o acesso restrito por assinaturas.
Figura 1. Rede SciELO – evolução do número de periódicos indexados e ativos por 14 coleçõesnacionais certificadas, entre 1997 e 2018.
Entretanto, os desafios que enfrenta a universalização do Acesso Aberto envolvem todo o sistema científico. A validação dos artigos que descrevem as pesquisas e realizada pelos periódicos com a colaboração de pesquisadores (pares) especialistas. Entretanto, esta qualificação da avaliação nas diferentes áreas e associada ao prestígio ou impacto dos periódicos, quase sempre medido por indicadores bibliométricos anuais das citações por artigo. Assim, não obstante as críticas generalizadas, os periódicos e seu ranqueamento operam como proxy da qualidade das pesquisas que publicam, e o seu prestígio ou impacto e estendido aos pesquisadores-autores, seus programas de pós-graduação, departamentos, universidades, países, regiões do mundo. Como a maioria dos periódicos melhor ranqueados pelos indicadores bibliométricos são comercializados pelas editoras, estas gozam de muito poder junto as comunidades de pesquisa para resistir ao avanço do acesso aberto e, portanto, da Ciência Aberta.
Rapidez e transparência na comunicação das pesquisas – rumo aos preprints
Incorporado como bandeira do movimento da Ciência Aberta, é crescente o questionamento dos periódicos pela demora e falta de transparência no processo de avaliação de manuscritos, muitas vezes referido como “caixa preta” e sem salvaguardas explícitas de vieses a favor ou contra dos autores por atitudes e decisões influenciadas por sua origem geográfica, nacionalidade, etnia, gênero, idade, escolas de pensamento, etc. O caminho principal é a abertura que inclui a publicação continua, a adoção de preprints e a avaliação aberta de pares como estágio mais avançado.
Na publicação on-line clássica, muitos periódicos minimizam o tempo de processamento publicando os manuscritos logo após a aprovação em versão provisória, sem nenhuma edição, ou utilizam a chamada publicação continua de artigos individuais, logo após aprovados e editados, com um número de identificação que substitui a paginação. A publicação continua existe há cerca de 20 anos, mas se popularizou com os mega journals que operam como plataforma de artigos, como nos casos da PLOS ONE e Scientific Reports. O SciELO recomenda fortemente que todos os periódicos adotem a publicação contínua.
Entretanto, a demora na publicação de artigos de resultados de pesquisas é resolvida completamente ao iniciar-se o fluxo de comunicação com os manuscritos disponibilizados como preprints, em acesso aberto, antes ou em paralelo à submissão a periódicos. Além de acelerar a comunicação dos resultados da pesquisa, os preprints, enquanto documentos formais com DOI (Digital Object Identifier) e preservados, asseguram aos autores precedência de descobrimentos, novas ideias e processos e ainda permitem o melhoramento dos manuscritos, antes ou durante o processo de avaliação por um periódico ao permitir a geração de sucessivas versões aprimoradas a partir de comentários e sugestões recebidas no servidor de preprints. São também passíveis de citação e de registro no currículo dos pesquisadores para informar solicitações e relatórios de auxílios. Uma vez aceito por um periódico, o preprint é atualizado com uma observação de que foi aprovado e um link para o artigo publicado. É crescente também a exposição de artigos já publicados a comentários públicos, facilidade que se caracteriza como avaliação pós-publicação.
O SciELO e o Public Knowledge Project (PKP), responsável pelo Open Journal Systems (OJS) estabeleceram, em 2018, uma pareceria para o desenvolvimento de um sistema com vistas a implantação de um servidor de preprints. O objetivo é que atenda a todas as áreas temáticas, na perspectiva de fortalecer o fluxo de alimentação dos periódicos que indexa com manuscritos de melhor qualidade, sem atrasos na comunicação das pesquisas. Internacionalmente, existem vários servidores de preprints já consolidados como o arXiv, criado em 1991 e que atualmente cobre áreas de física, matemática, ciências da computação e seis outras áreas; o bioRxiv e o PeerJ, criados em 2013 para as áreas de ciências biológicas; o SSRN, criado em 1994 para Ciências Sociais, Humanidades e outras disciplinas e a OSF Preprints, que opera uma coleção de mais de 20 servidores de preprints, etc.
Quanto à transparência da avaliação por pares, um número ainda pequeno, porém crescente de periódicos oferece opções de abertura progressiva aos editores, autores e pareceristas. O SciELO recomenda as seguintes opções de avanço gradual de transparência e abertura: inclusão no texto do artigo publicado do nome do editor responsável pela avaliação e aprovação; publicação de pareceres de artigos aprovados como texto de comunicação científica com DOI; e, abertura das identidades dos autores e pareceristas durante o processo de avaliação. Entretanto, os periódicos do Brasil ainda veem com muita reserva a adoção da abertura plena da avaliação de manuscritos como é feita pela plataforma de publicação F1000 Research.
Linhas de Ação para os próximos anos
Todos os atores e instâncias da pesquisa são chamados a posicionar-se política e operacionalmente frente aos desafios e, especialmente, as vantagens e ganhos que a adoção da Ciência Aberta significara para os respectivos entornos, assim como suas interdependências, nas quais a participação e cooperação internacional têm um papel decisivo. A renúncia a posicionar-se frente as complexidades e ficar no aguardo do que está por vir pode ser cômodo inicialmente, mas pode também reduzir ganhos, afastar-se do estado da arte e atrasar-se na curva de aprendizagem das práticas de Ciência Aberta.
As áreas temáticas mais internacionalizadas estão condicionadas ao ritmo de adoção da Ciência Aberta, ditadas pelos organismos de ciência e tecnologia, sociedades científicas e editoras comerciais dos países desenvolvidos. As menos internacionalizadas deverão ditar seu próprio ritmo, o que abre um campo de ajustes e inovações das estruturas de pesquisa. Entretanto, para ambos os contextos, o posicionamento proativo das autoridades, de políticas públicas e institucionais de pesquisa é essencial para avançar na aprendizagem e defender pautas de interesse nacional.
Os pesquisadores, enquanto responsáveis pela formulação e execução de projetos de pesquisa, são, ao mesmo tempo, os atores mais importantes e os que mais dependem de outros atores e instâncias no processo de adoção da Ciência Aberta, com destaque para a liderança dos periódicos, que, em número crescente, conduzem os pesquisadores a cumprir exigências de práticas da Ciência Aberta em suas políticas e procedimentos editoriais. A proatividade dos pesquisadores dependerá também das políticas de financiamento e dos sistemas de avaliação da pesquisa, na eventualidade de passarem a exigir ou premiar a obediência as práticas da Ciência Aberta.
Os sistemas de bibliotecas das universidades e institutos vêm desempenhando um papel de liderança na adoção das práticas de Ciência Aberta, especialmente na sua disseminação na operação de repositórios de dados de pesquisa.
No curso de adoção da Ciência Aberta, vale lembrar, em primeiro lugar, que a apropriação das inovações que ela traz, conforma um processo complexo política, social, financeira e operacionalmente, que demandará meses de aprendizagem e anos de experiências, com ajustes sucessivos até que se torne o modus operandi predominante da pesquisa. Depois, vale lembrar que se trata de um empreendimento global que abarcará progressivamente todos os países, disciplinas e áreas temáticas, mas cujo desenvolvimento embutira um sem-número de contextualizações. Nesse sentido, o desafio maior para as autoridades e as comunidades de pesquisa do Brasil e definir e implantar linhas de ação para situar-se oportunamente no avanço nacional e global da Ciência Aberta, com foco no fortalecimento e ampliação de capacidades e infraestruturas adequadas as condições e prioridades de cada entorno.
Entre as primeiras linhas de ação, destaca-se, por um lado, a promoção nas diferentes comunidades do mais amplo entendimento do que é a Ciência Aberta em toda a sua extensão, como afetará a todos e a cada um e, principalmente, como enriquecera a capacidade científica e as prioridades de cada contexto. Por outro, a promoção de diálogos para a formulação de posicionamentos públicos das comunidades de pesquisa sobre o alinhamento com as práticas da Ciência Aberta. O entendimento e a construção progressiva de consensos a favor das boas práticas da Ciência Aberta nos diferentes contextos são condição e meios para a superação das resistências e posicionamento proativo.
Nota
1. Esse post foi originalmente publicado no Boletim Informativo da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo e dividido em duas partes para publicação no blog SciELO em Perspectiva. Veja a Parte I aqui.
Referências
ALBAGLI, S., MACIEL, M.L. and ABDO, A.H. (org.). Ciência Aberta, questões abertas. Brasília: Ibict; Rio de Janeiro: Unirio, 2015 [viewed 1 August 2019]. Available from: https://bit.ly/2o2b6c4
BENEDIKT, F. and SASCHA, F. Open Science: One Term, Five Schools of Thought. In: BENEDIKT, F. and SASCHA, F. (eds) Opening Science. Cham: Springer, 2014 [viewed 1 August 2019]. DOI: https://doi.org/10.1007/978-3-319-00026-8_2
MONS, B. Data Stewardship for Open Science: Implementing FAIR Principles. Boca Raton: CRC Press, 2018. Available from: https://bit.ly/2uVb47z
PACKER, A.L. and SANTOS, S. Ciência Aberta e o novo modus operandi de comunicar pesquisa. Boletim Informativo da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo. 2019, vol. 45, no. 1, pp. 17-24 [viewed 1 August 2019]. Available from: https://www.sbcs.org.br/wp-content/uploads/2019/06/Boletim-SBCS-Volume-45-N%C3%BAmero-1.pdf
SANTOS, P.X., et al. Livro Verde – Ciência Aberta e dados abertos: mapeamento e análise de políticas, infraestruturas e estratégias em perspectiva nacional e internacional. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017 [viewed 1 August 2019]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/24117
SciELO – Linhas prioritárias de ação 2019-2023 [online]. SciELO 20 Anos. 2018 [viewed 1 August 2019]. Available from: https://www.scielo20.org/redescielo/wp-content/uploads/sites/2/2018/09/Líneas-prioritaris-de-acción-2019-2023_pt.pdf
WILKINSON, M. D., et al. The FAIR guiding principles for scientific data management and stewardship. Scientific Data [online]. 2016, vol. 1, no. 3 [viewed 1 August 2019]. DOI: 10.1038/sdata.2016.18. Available from: https://www.nature.com/articles/sdata201618
Links externos
O que é Ciência Aberta? – Formação Modular em Ciência Aberta <https://campusvirtual.fiocruz.br/gestordecursos/mod_hotsite/ciencia-aberta>
Open Science MOOC <https://opensciencemooc.eu/about/>
Research Data Alliance <https://rd-alliance.org/>
The FOSTER Portal <https://www.fosteropenscience.eu/>
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Leia comentário em espanhol, por Javier Santovenia Diaz:
https://blog.scielo.org/es/2019/08/01/ciencia-abierta-y-el-nuevo-modus-operandi-de-comunicar-la-investigacion-parte-ii/#comment-55354
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