Por Ernesto Spinak e Abel L Packer
Os periódicos científicos completam 350 anos desde a aparição do Journal des Sçavans e Philosophical Transactions. Ao longo destes anos os periódicos passaram a ser o principal meio de comunicação dos resultados de pesquisa científica. Eles acompanham e registram o avanço da ciência, principalmente a partir de meados do século XX. Em seu conjunto constituem a memória dinâmica principal do avanço do conhecimento científico. Sua produção em series periódicas conforma fluxos de informação científica nas diferentes disciplinas e áreas temáticas que informam aos pesquisadores o progresso em suas áreas de interesse.
Estes fluxos de informação comunicados pelos periódicos são controlados pelos índices bibliográficos que registram as novas comunicações e suas interações com ideias e dados publicados anteriormente. Estes índices são uma fonte indispensável para a atualização científica e uma fonte importante de seguimento e ranking do desempenho das pesquisas, grupos de pesquisa, instituições, áreas temáticas, de países e, claro, dos periódicos. Em resumo, os periódicos são parte integral da infraestrutura da ciência.
Existem diferentes estimativas do número de periódicos científicos. O índice Ulrich’s registra mais de 70 mil periódicos “refeered/peer-reviewed”, dos quais mais de 50 mil são publicados online. Em maio de 2014 o Portal de Periódicos CAPES dava acesso a mais de 37 mil periódicos científicos em textos completos. O índice WoS cobre mais de 13 mil periódicos, o Scopus mais de 20 mil, e o SciELO mais de mil.
Com o surgimento da Web e sua consolidação nas últimas duas décadas e meia como o principal meio de intercâmbio de informação da humanidade, a publicação online passou a ser também o meio principal da comunicação científica. Com as facilidades das tecnologias de informação e comunicação, os periódicos e os índices bibliográficos foram renovados e muitas inovações estão em curso. A disponibilidade e interoperabilidade online foram os principais avanços ao lado da emergência do acesso aberto, da publicação continuada de artigos assim que são aprovados pelos comitês editoriais, dos megajournals e do fortalecimento da visibilidade dos periódicos dos países emergentes e em desenvolvimento com programas e redes como SciELO e similares.
A comunicação entre os cientistas foi acelerada com ajuda da Web e dos sistemas de apoio às redes sociais. Em muitos casos a comunicação direta se assemelha às cartas entre cientistas que precederam o aparecimento dos periódicos. Pois a história há 350 anos começou assim, mediante comunicações e cartas entre a “communauté de savants” ou “community of scholars”. Recapitulemos um pouco a história.
No final da Idade Média o conhecimento científico era um corpus enorme construído ao longo de séculos, mediante o esforço admirável de acadêmicos que tentavam sintetizar a filosofia aristotélica com a tradição cristã. No início da Era Moderna e chegando ao século XVII, encontramos uma quantidade de grandes nomes que se sentem comprometidos em estabelecer este conhecimento científico sobre bases mais firmes.
Apenas para mencionar alguns, temos Francis Bacon, Galileu, Descartes, Robert Boele, Spinoza, Leibniz, Newton e muitos outros, que se envolveram na busca de um núcleo em comum de sabedoria, isto é, um núcleo filosófico no qual o conhecimento poderia se basear, que lhes permitiria enfrentar a tradição filosófica que receberam. Buscavam novas vias para obter a unidade do conhecimento sob um novo paradigma, que incluísse a experimentação e a comunicação posterior dos resultados aos colegas, no formato de cartas no principio e mais tarde, graças à imprensa, seria possível dar uma difusão mais ampla.
Então, em 1665, já faz 350 anos, e com apenas 60 dias de diferença, surgiram por vias diferentes, de um lado e do outro do Canal da Mancha, as duas primeiras “publicações científicas”, que antecederam as atuais. Estas publicações foram o Journal des Sçavans e as Philosophical Transactions, mais tarde renomeadas para Journal des Savants e Philosophical Transactions of the Royal Society, respectivamente.
Em 5 de janeiro de 1665 foi editado em Paris o primeiro número do Journal des Sçavans, sob o patrocínio privado do advogado e membro do parlamento Denis de Sallo, Sieur de a Coudraye apoiado por Jean-Baptiste Colbert, Ministro de Economia, que dois anos mais tarde fundaria a Académie Royale des Sciences (dezembro de 1666).
O Journal des Sçavans proclamou desde o principio sua ambição de difundir noticias sobre os livros e as pessoas da “République des lettres”, o que não somente incluía a pesquisa científica como a conhecemos hoje, como também discussões intensas sobre a filosofia Cartesiana, preenchendo todas as áreas do pensamento neste século, tanto a favor como contra. Descartes era o tema das conversações eruditas em Paris e nas províncias, e por mais de 50 anos não havia um só livro publicado na França que não tivesse uma discussão filosófica com Descartes como objeto.
O Journal des Sçavans impôs um novo estilo de escrita e formas de disseminar o conhecimento científico, indicando seus cinco objetivos no primeiro número:
- O editor anuncia que informará aos leitores sobre os novos livros publicados na Europa, não somente em listas de títulos, como também comentários e descrições breves dos conteúdos.
- Obituários de pessoas famosas com suas bibliografias.
- Comunicação de experimentos e descobertas em Física e Química que expliquem os fenómenos da natureza, observações astronómicas, máquinas úteis e descrições anatômicas de animais.
- Decisões nas cortes religiosas e seculares, assim como também os éditos de censura.
- De forma geral “não haverá nada que ocorra na Europa que valha a pena ser conhecido pelos homens de letras que não se possa aprender neste Journal”
O alcance do Journal des Sçavans, de maneira geral, era informar sobre tudo o que estivesse acontecendo na comunidade dos “savants”, assim como a comunicação de informes de diferentes gêneros, o que mostra que o quadro filosófico que expressa o Journal é muito mais amplo que o puro Cartesianismo, e que este é só um de seus ingredientes filosóficos, porém que o transcende.
As Philosophical Transactions, o outro periódico, foi fundado apenas dois meses mais tarde, em 6 de março de 1665, e nasce e desenvolve-se com uma história diferente.
A Royal Society foi fundada em Londres em 1662, sendo um de seus dois secretários Henry Oldenburg, um filósofo alemão considerado como uma das eminências da Europa em seu tempo. Oldenburg tinha a tarefa de manter uma rede extensa de correspondência científica. Os membros da Royal Society se reuniam periodicamente para ouvir a leitura destas cartas, e era responsabilidade de Oldenburg informar aos membros que não podiam assistir às reuniões o conteúdo das cartas. Então Oldenburg começou a imprimir estas cartas para disseminar a informação aos sócios e, buscando uma forma de sistematizar a tarefa (e ganhar algum dinheiro), começou a imprimir como um Boletim… que deu inicio à revista.
As Philosophical Transactions em comparação ao Journal des Sçavans (com seus cinco objetivos ambiciosos), cobria uma faixa mais reduzida de temas, principalmente os que hoje poderíamos considerar “científicos”, e relativamente poucas revisões de livros.
Então ali começou uma história que nestas semanas está completando 350 anos. Hoje em dia ambos os periódicos são ainda publicados, porém o Journal des Sçavans está mais orientado ao âmbito literário que o científico. Desde fevereiro de 2014, o Journal des Sçavans está disponível online na Bibliothèque Nationale de France Gallica digital library.
Como reflexão final poderíamos agregar que, desde o mesmo começo destes periódicos, havia um consenso entre os pesquisadores e sábios de que as descobertas deviam ser difundidas e apresentadas abertamente à avaliação por seus pares. O “peer review” é tão antigo como os periódicos científicos, e ademais, é interessante notar que, naquela época, a arbitragem não era um processo anônimo nem cego, e sim aberto a todos os colegas, uma espécie de peer review e Open Access.
Referências
ALEXANDRESCU, V. Branching Off: The Early Moderns in Quest for the Unity of Knowledge (Foundations of Modern Thought). 2009.
BANKS, D. Starting science in the vernacular. Notes on some early issues of the Philosophical Transactions and the Journal des Sçavans, 1665-1700. ASp [Online]. 2009, vol. 55. [viewed 24 February 2015]. Available from: http://asp.revues.org/213Date
DOBRE, M. Early Cartesianism and the Journal des Sçavans, 1665–1671. Studium: Revued’Histoire des Sciences et des Universités. 2012, vol. 4, nº 4, pp. 228-240. [viewed 24 February 2015]. Available from: http://www.gewina-studium.nl/index.php/studium/article/view/1557/1594
Journal des savants. Wikipedia. [viewed 24 February 2015]. Available from: http://fr.wikipedia.org/wiki/Journal_des_savants
NORMAN, J. Journal des sçavans: The First Scientific Journal Begins Publication (January 5 1665). History of Information.com. [viewed 24 February 2015]. Available from: http://www.historyofinformation.com/expanded.php?id=2661
Philosophical Transactions of the Royal Society. Wikipedia. [viewed 24 February 2015]. Available from: http://en.wikipedia.org/wiki/Philosophical_Transactions_of_the_Royal_Society
Link Externo
Bibliothèque Nationale de France Gallica digital library – <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb343488023/date.r=journal+des+scavans.langEN>
Sobre Ernesto Spinak
Colaborador do SciELO, engenheiro de Sistemas e licenciado em Biblioteconomia, com diploma de Estudos Avançados pela Universitat Oberta de Catalunya e Mestre em “Sociedad de la Información” pela Universidad Oberta de Catalunya, Barcelona – Espanha. Atualmente tem uma empresa de consultoria que atende a 14 instituições do governo e universidades do Uruguai com projetos de informação.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Pingback: 350 anos de publicação científica: desde o “Journal des Sçavans” e “Philosophical Transactions” até o SciELO | Blog da BC