Resultados de ensaios clínicos não publicados distorcem a pesquisa médica

Por Lilian Nassi-Calò

Em 1997 foi criada a iniciativa ClinicalTrials.gov como ação conjunta da agência norte-americana Food and Drug Administration e do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HSS) dos Estados Unidos através dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH). Seu propósito era estabelecer uma plataforma para registro de informação sobre ensaios clínicos conduzidos pela iniciativa pública (institutos de pesquisa e agências governamentais) e privada (companhias farmacêuticas). O Food and Drug Administration Modernization Act (FDAMA) havia tornado obrigatório o registro de ensaios clínicos naquele ano, bem como sua ampla disponibilização à comunidade médica, pesquisadores e ao público em geral. O portal e domínio são administrados pela National Library of Science (NLM/NIH) e nele pode-se encontrar toda informação sobre a droga ou o procedimento médico em estudo, o principal pesquisador, patrocinador e, principalmente, resultados sobre efetividade do tratamento e efeitos colaterais observados. O principal objetivo da iniciativa é impedir que as partes interessadas ocultem resultados negativos ou efeitos indesejados.

Desde então, organizações, governos e sociedades científicas em todo o mundo corroboraram, adotaram e criaram iniciativas semelhantes com o objetivo de regulamentar a obrigatoriedade de registro e aumentar a confiabilidade e transparência dos estudos. No Brasil, o desenvolvimento da Plataforma Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC) teve início em 2006 como ação conjunta do Ministério da Saúde do Brasil, Fundação Oswaldo Cruz, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a BIREME/OPAS/OMS, tendo sido inaugurada em 2010 e homologada em 2011 pela Organização Mundial da Saúde por meio do International Clinical Trials Regsitry Platform.

A despeito disso, um post anteriormente publicado neste blog1 mostra que a reprodutibilidade dos estudos sobre potenciais novos fármacos e terapias inovadoras é muito baixa, o que compromete os ensaios clínicos. Em vista disso, as companhias farmacêuticas estão repetindo os experimentos em seus laboratórios antes de recrutar voluntários para a fase de testes, evitando que recursos financeiros e humanos sejam desperdiçados com drogas e terapias pouco promissoras.

Recente estudo publicado no New England Journal of Medicine2, entretanto, mostra um cenário preocupante. A pesquisa realizada com mais de 13 mil ensaios clínicos realizados entre 2008 e 2013 registrados na plataforma ClinicalTrials.gov, sujeitos à regulamentação pela Food and Drug Administration Amendments Act (FDAAA), Lei Federal norte-americana aprovada em 2007. O estudo mostra que, a despeito da obrigatoriedade de registrar os ensaios clínicos em uma base de acesso público, uma fração reduzida dos mesmos é publicada em periódicos científicos, comprometendo a transparência e aplicabilidade das descobertas. Cabe ressaltar que é nos EUA que a maior parte dos novos fármacos desenvolvidos no mundo recebem sua primeira aprovação.

No período de um ano, os pesquisadores da Universidade Duke descobriram que apenas 17% dos ensaios encomendados pela indústria farmacêutica foram publicados. O NIH tem índice pior, com apenas 8,1% dos ensaios publicados no mesmo período, e as outras instituições de pesquisa governamentais tem índice de publicação de 5,7%. Em cinco anos, os índices de publicação de ensaios clínicos subiram para 41,5% no caso das indústrias, 38,9% para o NIH e 27,7% para as demais instituições acadêmicas públicas. Existem, teoricamente, sansões para quem não o faz. O FDA tem poder de multar as companhias e reportar no portal ClinicalTrials.gov sobre a não publicação e o NIH pode cancelar o financiamento, porém isso na prática é pouco frequente.

Os pesquisadores pressupõem que os ensaios não publicados são aqueles que não mostram as novas drogas como seus idealizadores desejariam. As companhias farmacêuticas têm motivos óbvios para ocultá-los e os pesquisadores, por outro lado, preferem publicar resultados positivos sobre drogas promissoras, o que impulsiona suas carreiras acadêmicas. Os periódicos também contribuem para este cenário, por favorecer artigos que mostrem resultados positivos. Como resultado disso tudo, muitos fármacos em estudo parecem mais promissores que de fato o são.

O artigo dos pesquisadores da Universidade Duke foi objeto de matéria no The Economist de 25 de julho de 20153. A revista semanal destaca a iniciativa internacional AllTrials, idealizada pela agência britânica Sense About Science para forçar pesquisadores a publicar a totalidade dos ensaios clínicos que conduzem. A iniciativa beneficente trabalha para aproximar a pesquisa científica da sociedade civil e publica estudos sobre boas práticas em pesquisa e comunicação científica em todas as áreas do conhecimento. AllTrials conta com o apoio da Colaboração Cochrane, PLoS e BMJ, entre outros, e tem por objetivo estimular o registro e publicação de todos os ensaios clínicos. A petição4 que insta governos, agências reguladoras e instituições de pesquisa a implementar medidas para promover a ampla disseminação dos resultados de ensaios clínicos foi assinada até momento por mais de 85 mil pessoas e quase 600 organizações em todo o mundo.

Um dos idealizadores da iniciativa AllTrials, o médico e pesquisador britânico Ben Goldacre, ilustra por meio de exemplos como o de resultados relevantes de ensaios clínicos, se estes tivessem sido divulgados a tempo, teriam mudado o curso da utilização de algumas drogas como o antidepressivo Prozac e o antiviral Tamiflu.

Se não por motivos éticos e científicos, as companhias farmacêuticas poderão daqui por diante considerar a opinião de seus acionistas para obedecer a obrigatoriedade de reportar todos os resultados de ensaios clínicos. Pode parecer contraditório que acionistas prefiram divulgar toda a verdade sobre uma nova droga, uma vez que isso pode se traduzir em menores lucros. Investidores de longo prazo preferem a verdade de imediato como forma de reduzir o nível de risco de suas carteiras. Dados apontam que 30% do valor de uma companhia está ligado aos resultados de seus ensaios. Aliado a isso, nos últimos anos as empresas farmacêuticas vêm sendo pesadamente multadas por descumprir a política de publicação de resultados. Neste sentido, Sense About Science está desenvolvendo um sistema para ranquear companhias de acordo com seu compromisso em publicar resultados de ensaios clínicos, o que vai certamente interessar aos acionistas e investidores.

O futuro imaginado em 1997, quando a iniciativa ClinicalTrials.gov foi criada, talvez fosse diferente do presente. Todavia, as iniciativas que vem sendo criadas recentemente apontam para maior transparência dos ensaios clínicos daqui por diante. Algumas empresas até cogitaram publicar resultados até agora inéditos – exceto para os autores dos estudos – porém esbarraram na falta de consentimento apropriado por parte dos participantes à época.

Espera-se que a atitude da indústria, do NIH e outras instituições acadêmicas públicas sujeitas à legislação do FDAAA mude com relação à publicação dos resultados de ensaios clínicos. Nas palavras da autora principal do estudo do NEJM2, Dr. Monique Anderson, “publicar resultados de ensaios clínicos como forma de contribuir para o conhecimento médico e científico é tanto uma obrigação ética quanto legal do pesquisador. É algo que prometemos a cada paciente que ingressa em um ensaio clínico”.

Notas

1. SCIENTIFIC ELECTRONIC LIBRARY ONLINE. Reprodutibilidade em resultados de pesquisa: a ponta do iceberg. SciELO em Perspectiva. [viewed 02 August 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/02/27/reprodutibilidade-em-resultados-de-pesquisa-a-ponta-do-iceberg/

2. ANDERSON, M.L., et al. Compliance with results reporting at ClinicalTrials.gov. N Engl J Med. 2015, vol. 372, pp. 1031-1039. DOI: 10.1056/NEJMsa1409364 Available from: http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMsa1409364

3. Clinical trials: Spilling the beans. Failure to publish the results of all clinical trials is skewing medical science. The Economist. 2015. Available from: http://www.economist.com/news/science-and-technology/21659703-failure-publish-results-all-clinical-trials-skewing-medical

4. Petição: “Todos os resultados de testes clinicos devem ser publicados”. AllTrials. Available from http://www.alltrials.net/petition/

Referências

ANDERSON, M.L., et al. Compliance with results reporting at ClinicalTrials.gov. N Engl J Med. 2015, vol. 372, pp. 1031-1039. DOI: 10.1056/NEJMsa1409364 Available from: http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMsa1409364

Clinical trials: Spilling the beans. Failure to publish the results of all clinical trials is skewing medical science. The Economist. 2015. Available from: http://www.economist.com/news/science-and-technology/21659703-failure-publish-results-all-clinical-trials-skewing-medical

Food and Drug Administration Amendment Act of 2007. U.S. Government Publishing Office (GPO). 2007. Available from: http://frwebgate.access.gpo.gov/cgi-bin/getdoc.cgi?dbname=110_cong_public_laws&docid=f:publ085.110.pdf#page=82

Petição: “Todos os resultados de testes clinicos devem ser publicados”. AllTrials. Available from http://www.alltrials.net/petition/

SCIENTIFIC ELECTRONIC LIBRARY ONLINE. Registro de ensaios clínicos será unificado na União Europeia. SciELO em Perspectiva. [viewed 02 August 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/05/05/registro-de-ensaios-clinicos-sera-unificado-na-uniao-europeia/

SCIENTIFIC ELECTRONIC LIBRARY ONLINE. Reprodutibilidade em resultados de pesquisa: a ponta do iceberg. SciELO em Perspectiva. [viewed 02 August 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/02/27/reprodutibilidade-em-resultados-de-pesquisa-a-ponta-do-iceberg/

Links externos

AllTrials –- <http://www.alltrials.net/>

ICTRP – <http://www.who.int/ictrp/en/>

Rebec – <http://ensaiosclinicos.gov.br/>

Sense About Science – <http://www.senseaboutscience.org/>

 

lilianSobre Lilian Nassi-Calò

Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

NASSI-CALÒ, L. Resultados de ensaios clínicos não publicados distorcem a pesquisa médica [online]. SciELO em Perspectiva, 2015 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/08/12/resultados-de-ensaios-clinicos-nao-publicados-distorcem-a-pesquisa-medica/

 

2 Thoughts on “Resultados de ensaios clínicos não publicados distorcem a pesquisa médica

  1. rogevando on September 28, 2017 at 16:09 said:

    Deve ser porque é muito burocrático conseguir registrar um ensaio clínico; pelo menos no Brasil. Pode demorar vários meses. Estou quase desistindo de registrar. Tentando há 5 meses.

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