Por Luiz Augusto Campos e Bernardo Buarque de Hollanda
Em 2021, os autores deste texto foram eleitos representantes da coleção de revistas das Humanidades e Ciências Sociais Aplicadas no Conselho Consultivo da plataforma SciELO, para o biênio 2022-23. Ainda em meio ao contexto da pandemia, iniciamos nosso mandato com determinadas missões propostas em nossa candidatura: fortalecer a coleção de Humanas, bem como toda a plataforma; estabelecer canais de diálogo e mediação entre os chefes editoriais dos periódicos e as instâncias diretivas da plataforma; discutir as céleres transformações por que passa o mundo editorial internacional e nacional dos últimos anos e elaborar estratégias para lidar com as mesmas na rotina das centenas de revistas filiadas à coleção.
Neste texto, buscamos prestar contas do trabalho executado no dia a dia da representação. Nossa proposta é registrar as premissas que orientaram nossas deliberações e as atividades mobilizadas para a sua efetivação.
O trabalho iniciado em 2022 envolvia duas questões maiores. Primeiro, o advento do chamado Programa da Ciência Aberta, um conjunto de diretrizes globais, pioneiramente incorporadas pela SciELO no Brasil desde 2019. Como se sabe, tal Programa visa a adoção de novos princípios de transparência e a implementação de mudanças gerenciais substantivas no cotidiano das práticas editoriais. Segundo, o contexto de precarização do fomento à ciência em geral, e à editoração científica em específico, fruto da conjuntura de um governo federal de extrema direita, com fortes influências neoliberais e anticientíficas.
Nesse cenário, buscamos pensar estrategicamente como contribuir com o fortalecimento das Humanidades na coleção – área com maior representatividade numérica de revistas indexadas na SciELO desde a sua criação em fins dos anos 1990 – e tencionamos estimular o debate interno junto aos editores acerca da Ciência Aberta. Procuramos estabelecer esse debate sem ignorar o cenário de perseguição e incerteza política então imperante no país.
Na Reunião Anual da SciELO em 20211, o diretor Abel Packer destacou que o Programa da Ciência Aberta havia chegado em um ponto de não-retorno e que cabia aos editores a adoção das medidas no interior de suas revistas. Embora concordemos com o diagnóstico e a necessidade da incorporação desses princípios, ponderamos que essa via tida por inexorável ainda não traz consigo um ponto de chegada claro. Isto é, se está razoavelmente evidente que precisamos rever e atualizar nossos valores de políticas e práticas editoriais, ainda não está claro qual forma institucional eles devem assumir tendo em vista as especificidades dos conhecimentos de cada uma das nove áreas em que se estrutura a coleção.
Nesse sentido, exercemos nosso mandato orientados pela ideia de que as Humanidades devem se apropriar do programa da Ciência Aberta de modo criativo e não apenas com a assunção reificada de experiências consolidadas em outros campos. Obviamente, o teste dessas realidades em áreas científicas vizinhas e externa é bem-vindo na produção e comunicação científica, mas não como imposições estrangeiras às particularidades de cada disciplina.
Desse enquadramento crítico, nasceu a ideia de organizar uma discussão pública sobre o tema que deu origem ao evento “A Ciência Aberta nas Humanidades” 2, organizado pela SciELO entre os dia 17/5 e 18/5/2022. No total, foram seis mesas sobre temas distintos, tais como: divulgação e visibilidade da produção científica, servidores de preprints, transparência e replicabilidade de bases de dados, abertura de pareceres, critérios da avaliação acadêmica, sustentabilidade financeira dos periódicos, entre outros temas caros e controvertidos. Foram mais de vinte palestrantes, em sua maioria editores-chefes de revistas de excelência, com liderança e reflexões acumuladas no assunto.
Para nossa grata surpresa, o evento teve um grande número de inscritos e despertou interesse da comunidade, com as mesas online sendo acompanhadas simultaneamente por cerca de 150 espectadores e que já contabilizam centenas de visualizações na página da SciELO no YouTube.
Mais do que buscar unanimidade, o objetivo do evento foi esclarecer, aprofundar e debater experimentos já realizados e bem-sucedidos por periódicos nacionais em face dos princípios e das demandas de ciência aberta. Uma dessas iniciativas emergiu do nosso contato com associações de pós-graduação de nossa área, com a proposição de que elas trocassem seus tradicionais anais de trabalhos acadêmicos em favor da plataforma SciELO Preprints. As justificativas são inúmeras.
Ao contrário do que ocorre com o formato dos anais de congressos, os manuscritos submetidos a servidores de preprint ganham um DOI, o que permite sua indexação e divulgação, tendo a sua preservação digital garantida. Além disso, tal formato de publicação representa uma economia de gastos por parte das Associações que não mais precisariam construir infraestruturas digitais caras para receber esses papers.
A proposta foi muito bem acolhida pela Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), que representa os programas de pós-graduação da Sociologia, Antropologia e Ciência Política brasileiras. No seu congresso de 2023, a ANPOCS já permitiu a submissão de manuscritos via SciELO Preprints3 e entendemos que esse modelo pode inspirar áreas correlatas e mesmo aquelas não vinculadas às Ciências Humanas.
Vale destacar que toda essa discussão envolve a atualização e a radicalização de critérios que, no passado, já contribuíram para colocar o ecossistema editorial brasileiro no mapa global. As políticas de acesso aberto, que marcam a origem da SciELO, não serviram apenas para democratizar a produção científica brasileira, mas também para estabelecer aqui um novo modelo de comunicação editorial crítico daquele imperante nos países mais ricos. É claro que o Programa da Ciência Aberta pretende ir muito além disso, mas nossos periódicos saem na frente nesse debate justamente porque têm no franqueamento ilimitado do acesso um dos seus princípios fundamentais. A apropriação criativa da Ciência Aberta é não apenas uma forma de radicalizar esses critérios editoriais que já constituem nosso diferencial comparativo, mas também garantir a trajetória de aumento da qualidade e visibilidade dos nossos periódicos.
Outra política da representação foi a defesa da coleção de Humanidades, particularmente depois de um período tão duro para nossos periódicos. A pandemia da Covid-19 e um governo marcado por constantes ataques à ciência colocaram em xeque inúmeros periódicos. No período imediatamente anterior ao início de nosso mandato, dois periódicos de alto impacto na área de Letras tiveram de fechar, devido à total perda de apoio que há anos, senão décadas, sua existência.
De todo modo, mesmo em face das duras adversidades para a gestão dos editores, desprovidos repentinamente de meios de financiamento, chegamos ao termo do biênio 2022-2023 com apenas um periódico desindexado da coleção e com a aprovação pelo Conselho Consultivo de 13 periódicos novos, totalizando a maior coleção da SciELO, com 143 revistas associadas.
Isso só foi possível graça ao funcionamento equitativo do Conselho Consultivo em relação às diferentes áreas que compõem a coleção. Nesse aspecto, vale frisar que as decisões concernentes a nossa coleção sempre se valeram das contribuições valiosas dos representantes das demais coleções, do mesmo modo que sempre encontramos no Conselho um espaço aberto para contribuir com as demais áreas.
Todo esse trabalho só foi possível graças ao acúmulo da representação que nos antecedeu, composta por Rachel Meneguello e Iara Belelli (2020-2021) bem como dos demais conselheiros e da excelência técnica da equipe SciELO como um todo. Passamos agora o bastão para as colegas Andréa Slemian e Debora Rezende, que assumem a representação no biênio 2024-2025 com desafios ainda maiores que aqueles assumidos por nós até então.
Notas
1 https://youtu.be/nTzCb_J0YEU?si=pw45Q2XTaG2p06ts
2 CAMPOS, L.A. and DE HOLLANDA, B.B. A Ciência Aberta nas Humanidades [online]. SciELO em Perspectiva, 2022 [viewed 11 April 2024]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2022/06/09/a-ciencia-aberta-nas-humanidades/
3 Preprints originalmente submetidos ao 47º Encontro Anual da ANPOCS: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprints/section/47-anpocs
Links externos
SciELO – YouTube: https://www.youtube.com/c/SciELONetwork
A Ciência Aberta nas Humanidades: https://eventos.scielo.org/humanidadesca/
SciELO Preprints: https://preprints.scielo.org/
Sobre Bernardo Borges Buarque de Hollanda
É professor adjunto da Escola de Ciências Sociais (FGV-CPDOC). É pós-doutor pela Maison des sciences de l’homme de Paris (Bourse Hermès-2009) e pela Universidade de Birmingham (Rutherford Fellowship – 2018). É membro do conselho da Associação Internacional de História Oral (International Oral History Association, IOHA) e editor das revistas Estudos Históricos e Words & Silences. É secretário geral da Associação Brasileira de História Oral. Suas principais áreas de interesse são: história social do futebol e torcidas organizadas; modernismo e vida literária no Brasil; cultura brasileira – crítica e interpretação; pensamento social e história intelectual.
Sobre Luiz Augusto Campos
Luiz Augusto Campos é professor de Sociologia e Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), e doutor pela mesma instituição. É coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e editor-chefe da revista DADOS. Suas pesquisas focam na interface entre raça e política.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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