Por Lilian Nassi-Calò
A comunicação de resultados de pesquisa acadêmica em periódicos arbitrados passou por relevante transformação com o advento da Internet. O modelo dominante de negócios das publicações impressas – onde os leitores pagam para ter acesso aos artigos – passou a dividir espaço com periódicos eletrônicos e novas formas de acesso. Os elevados custos de subscrição de periódicos impulsionou o movimento de acesso aberto (AA) iniciado nos anos 90, e o surgimento de publicações online livres de barreiras de acesso e da maior parte das barreiras de copyright existentes anteriormente.
O programa SciELO, lançado em 1998, foi pioneiro na adoção do acesso aberto antes mesmo da consolidação desta forma de publicação através do movimento AA. Como resultado, a América Latina, tornou-se a região com maior número de periódicos avaliados por pares disponível em texto completo. Posteriormente uniram-se à coleção Portugal, Espanha e África do Sul. Hoje o SciELO conta com mais de mil periódicos e 500 mil artigos, constituindo uma das maiores iniciativas em acesso aberto no mundo.
Estudos de 20141 estimam que 35-50% dos artigos publicados se encontram disponíveis em AA, com tendência de aumento. Uma vez que os leitores não pagam para acessar os artigos, a conta recai sobre: a instituição ou sociedade científica responsável pelo periódico, patrocínio de anunciantes, apoiadores (privados ou públicos) ou os autores (e suas instituições), mediante a cobrança de taxas de publicação do artigo, do inglês article processing charge (APC). Ocorre ainda uma terceira via, a dos periódicos híbridos, nos quais os autores que optam por disponibilizar seus artigos em AA pagam a APC, enquanto os demais artigos permanecem acessíveis mediante pagamento individual ou assinatura do periódico.
Na última década, observou-se um grande aumento de periódicos AA que utilizam a APC, sendo que muitos deles gozam de excelente reputação em suas áreas, como a coleção BioMed Central, que reúne mais de 360 periódicos de qualidade arbitrados por pares na área de biomedicina, e o programa SciELO, com mais de mil periódicos em todas as áreas do conhecimento. A BioMed Central opera com diferentes valores de APC, porém exime autores de países de baixa renda do pagamento. No SciELO, uma pequena parte dos periódicos trabalha com APC apenas para cobrir os custos de publicação, uma vez que a grande maioria dos publishers não tem fins lucrativos. Novas formas de avaliação por pares também emergiram, a exemplo de mega-journals como os da coleção PLoS que julgam rigor científico e validade, porém deixam para os leitores avaliar a relevância dos resultados. Esta nova abordagem da avaliação por pares vem sendo adotada por outros periódicos AA.
A popularização de periódicos em acesso aberto que preconizam publicação expedita e utilizam a facilidade da plataforma na Web fez surgir uma classe de periódicos que não conduz avaliação por pares formal e que tem por objetivo apenas coletar APC de quem pretende inflar sua lista de publicações rapidamente. A esta classe de periódicos deu-se o nome de ‘pseudo journals’ e às editoras que os publicam de ‘publishers predatórios’.
O dilema dos publishers predatórios foi ilustrado por um estudo conduzido em duas universidades da Nigéria2, no qual os acadêmicos entrevistados revelaram a dificuldade de publicar em periódicos ‘ocidentais’ ao mesmo tempo que eram solicitados a publicar em periódicos internacionais. Este fato pode ter impulsionado o surgimento de periódicos predatórios na África e também em outros países como Paquistão, China e Índia.
Os publishers predatórios causam um enorme dano à imagem de periódicos AA que cobram APC devido, principalmente a artigos sensacionalistas publicados na literatura científica alegando que AA é sinônimo de publicações de baixa qualidade, metodologia discutível e sem avaliação por pares. Consequentemente, muitos autores relutam em enviar seus artigos à periódicos AA, e faz com que seu ingresso em bases renomadas como o Web of Science seja gravemente dificultado.
Até o momento não havia um trabalho pormenorizado sobre os publishers predatórios a nível mundial e suas características, até o artigo recentemente publicado no BMC Medicine de autoria de Ceny Shen e Bo-Christer Björk, da Hanken School of Economics, Helsinki, Finlândia3. Os autores conduziram um detalhado estudo, onde identificaram 1.030 publishers (614 da lista de periódicos predatórios de Jeffrey Beall4 e 416 publishers de periódicos individuais). Os autores, entretanto, enfatizam que o uso da lista de Beall encontrou justificativa apenas prática, por se tratar de uma fonte altamente controversa.
Após uma análise preliminar restaram 966 publishers e 11.873 periódicos. Deste total, os autores extraíram uma amostra representativa de 656 publishers e 613 periódicos. Esta amostra foi analisada quanto ao país declarado pelos publishers, número de periódicos publicados pelas editoras, número de artigos por ano nos periódicos, país de afiliação dos autores destes artigos e valores da APC cobrada.
O número total de periódicos publicados por publishers predatórios cresceu de 1.800 em 2010 para 8.000 em 2014. Estes periódicos, no total, publicaram 53 mil artigos em 2010 e quase dez vezes mais, 420 mil artigos em 2014. De 2012 até 2014, publishers que publicam entre 10-99 periódicos acusaram o maior incremento em número de artigos publicados. Aqueles que publicam entre 2-9 periódicos e publishers de um único periódico tiveram crescimento menos pronunciado, porém contínuo entre 2010 e 2014.
Quanto à área de conhecimento dos periódicos, aqueles categorizados como inespecíficos publicaram o maior volume de artigos em 2014. A seguir estão periódicos de engenharia (97 mil artigos) e biomedicina (70 mil artigos). O número médio de artigos por ano na amostra subiu de 30 em 2010 para 53 em 2014.
O país declarado pelos publishers é um tema controverso. Alguns informam endereços nos EUA ou países da Europa Ocidental, porém estes muitas vezes são inexistentes ou apenas uma caixa postal. Na amostra selecionada (656 publishers), 27% se localizam na Índia, 11,6% na Ásia, 5,5% na África, 8.8% na Europa e 17,5% na América do Norte. De boa parte (26,8%) foi impossível determinar o país de origem. Há ainda 1,7% na Austrália, 0,5% na América do Sul e 0,5% no Oriente Médio.
Para avaliar o país de afiliação dos autores e o tempo médio de publicação, uma amostragem mais reduzida foi utilizada. Foram identificados 47 periódicos que indicavam datas de submissão e aprovação, e tomados 5 artigos aleatórios destes periódicos. Nesta amostra, 34,7% dos autores são da Índia; 25,6% da Ásia; 16,4% da África; 9,2% da América do Norte; 8,8% da Europa; 2,3% da América do Sul; 1,5% da Austrália e 1,5% indeterminado. Quanto ao tempo médio de publicação, obteve-se 3,6 meses entre a submissão e a publicação, e mediana de 2,7 meses.
Os valores de APC variam muito entre pequenos e grandes publishers. Os valores médios por estrato de acordo com o número de periódicos publicados revelam que publishers pequenos (de um periódico, e nas faixas de 2-9 e 10-99 periódicos) operam com APCs da ordem de US$ 83-133, enquanto que para publishers que publicam acima de 100 periódicos este valor sobe para US$ 796. Os autores estimam, com base nestes dados, que o mercado de publishers predatórios mobilizou US$ 74 milhões em 2014. Periódicos AA de boa reputação, entretanto, mobilizaram em 2013 US$ 244 milhões. Para efeito de comparação, o mercado de periódicos por assinatura movimentou naquele ano US$ 10,5 bilhões. Posts anteriormente publicados neste blog5,6 indicam que a transição de modelo de assinatura para AA financiado por APC é totalmente viável, entretanto, alguns fatores impedem seu progresso.
O valor relativamente baixo de APC cobrado por boa parte dos publishers predatórios faz sentido frente ao dado que 39% dos autores de países emergentes são responsáveis pessoalmente pelo pagamento da taxa, contra 10% de autores de países desenvolvidos. Isso está de acordo com o maior crescimento de publishers predatórios de pequeno porte relatado no estudo. É interessante a posição de Shen e Björk7 quanto ao conhecimento dos autores sobre o caráter predatório dos periódicos. Segundo eles, os autores não são vítimas inocentes e tomam uma decisão consciente ao assumir os riscos de publicar nestes periódicos, provavelmente esperando que uma análise superficial de sua lista de publicações não os exponha imediatamente. Mais uma vez, a valorização da quantidade sobre a qualidade produz distorções na avaliação da pesquisa e perpetua práticas desta natureza.
Merece destaque a observação sobre o baixo percentual de publishers predatórios (0,5%) e autores (2,2%) da América Latina (AL) neste estudo. Shen e Björk atribuem este fato à uma combinação de fatores onde a infraestrutura da região é diferente das outras regiões em desenvolvimento. A comunicação científica na região da AL conta com uma coleção de periódicos de qualidade arbitrada por pares em AA através do programa SciELO. O programa se caracteriza por publishers sem fins lucrativos que publicam geralmente um único periódico ou pouco mais de um, e contam com financiamento, geralmente de natureza pública através de instituições de pesquisa ou sociedades científicas. Poucos operam com APC suficiente para cobrir custos de publicação e 25% destes periódicos estão indexados no Web of Science.
Os autores concluem o trabalho com uma observação relevante: “Importantes publishers AA reputáveis não ficaram em silêncio quando o AA foi difamado por culpa dos predadores. Ao invés de elaborar listas, como fez Jeffrey Beall, a estratégia foi definir critérios de qualidade e acreditação de periódicos que os cumpram”, afirmam Shen e Björk, citando iniciativas como DOAJ e a Open Access Scholarly Publishing Associations (OASPA), que atuam em prol da qualidade e credibilidade da publicação em acesso aberto. “Um número crescente de periódicos AA reputáveis está hoje indexado no WoS.”
Notas
1. SPINAK, E. Os artigos em acesso aberto chegaram para ficar: em menos de 10 anos aproximam de 50% do nível mundial. SciELO em Perspectiva. [viewed03 October 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2013/08/28/os-artigos-em-acesso-aberto-chegaram-para-ficar-em-menos-de-10-anos-aproximam-de-50-do-nivel-mundial/
2. OMOBOWALE, A. O.; et al. Peripheral scholarship and the context of foreign paid publishing in Nigeria. Current Sociol. 2014, vol. 62, nº 5, pp. 666–684. DOI: 10.1177/0011392113508127
3. SHEN, C and BJÖRK, B. C. Predatory open access: a longitudinal study of article volumes and market characteristics. BMC Medicine. 2015, vol. 13, nº 1, pp. 230-245. DOI: 10.1186/s12916-015-0469-2
4. BEALL, J. List of publishers. Scholarly Open Access. 2015. Available from: http://scholarlyoa.com/publishers/
5. COP, N. Recursos gastos globalmente em assinaturas de periódicos podem ser completamente transferidos para um modelo de negócio de acesso aberto para liberar acesso aos periódicos?. SciELO em Perspectiva. [viewed 08 September 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/05/26/recursos-gastos-globalmente-em-assinaturas-de-periodicos-podem-ser-completamente-transferidos-para-um-modelo-de-negocio-de-acesso-aberto-para-liberar-acesso-aos-periodicos/
6. VELTEROP, J.O que está atrasando a transição ao acesso aberto se não custa mais?. SciELO em Perspectiva. [viewed03 October 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/09/10/o-que-esta-atrasando-a-transicao-ao-acesso-aberto-se-nao-custa-mais/
7. REGO, T. C. Produtivismo, pesquisa e comunicação científica: entre o veneno e o remédio. Educação e Pesquisa. 2014, vol. 40, nº 2, pp. 325-346. DOI: 10.1590/S1517-97022014061843 Available from: http://ref.scielo.org/bj7zmm
Referências
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VELTEROP, J. O que está atrasando a transição ao acesso aberto se não custa mais?. SciELO em Perspectiva. [viewed 03 October 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/09/10/o-que-esta-atrasando-a-transicao-ao-acesso-aberto-se-nao-custa-mais/
Links externos
BioMed Central – <http://www.biomedcentral.com/>
DOAJ – <http://doaj.org/>
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Sobre Lilian Nassi-Calò
Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.
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