Avaliação por pares: ruim com ela, pior sem ela

Por Lilian Nassi-Calò

Foto adaptada da original: Quinn Dombrowski.

Foto adaptada da original: Quinn Dombrowski.

Revisão por pares (peer review) de artigos científicos é a avaliação de resultados de pesquisa ou propostas de projetos quanto à competência, significância e originalidade conduzida por especialistas qualificados que pesquisam e submetem para publicação trabalhos na mesma área (pares).

A ciência avança tendo como base o arcabouço de conhecimento acumulado pela humanidade e depende da disseminação de resultados em periódicos ou outros tipos de publicações. Desde a criação dos primeiros periódicos científicos no Século XVII, os documentos submetidos para publicação deviam ser difundidos e apresentados à avaliação pelos pares.

Desde então, porém com maior regularidade e ênfase após a II Grande Guerra, a revisão por pares vem sendo empregada na avaliação dos resultados de pesquisa e a exclusão desta etapa leva ao descrédito da publicação e dos autores que nela publicam, ao menos pela maior parte da comunidade científica internacional. Um estudo conduzido em 2009 pela agência britânica Sense about Science1 com mais de 4 mil pesquisadores aponta que 84% deles considera que sem revisão por pares, a comunicação científica ficaria totalmente sem controle, comprometendo a credibilidade da informação publicada.

É difícil para alguém não pertencente ao meio acadêmico compreender a complexidade das etapas envolvidas na publicação científica. Em muitos países, porém, a sociedade civil vem tomando conhecimento sobre ciência por meio da leitura de jornais e na Internet e mostra sinais de que começa a compreender a importância de ter acesso à informação certificada para formar opinião e tomar decisões sobre temas do dia-a-dia como tecnologia, preservação ambiental, mudanças climáticas, saúde, direito, economia e muitos outros. Assim, o conceito da informação passar por algum tipo de certificação para ter validade e confiabilidade vai se tornando intuitivo e cada vez mais aceito.

Vários estudos mostram que a avaliação por pares é tida como um dos pilares – senão o mais importante – da comunicação científica. Os autores são unânimes ao afirmar que a confiança implícita que acompanha essa avaliação ajuda a separar o joio do trigo em meio à quantidade sempre crescente de literatura científica disponível, online ou impressa. Apesar das dificuldades em passar pelo processo de revisão, os autores são da opinião de que o processo melhora, de fato, a qualidade do manuscrito. Os pareceristas avaliam o manuscrito e fazem recomendações ao editor do periódico se o artigo deve ser aceito como está, revisado antes da publicação ou rejeitado, avaliando qualidade, originalidade e importância, além de fazer sugestões para aprimoramento. Isso faz com que pesquisadores desejem publicar em periódicos arbitrados e que possuam um sólido mecanismo de avaliação. Estes conceitos foram resumidos por Donald Kennedy em um editorial do periódico Science em 20042, onde ele afirma que a revisão de um artigo científico geralmente envolve adicionar qualificações e limitações às conclusões.

A avaliação por pares, ademais, é particularmente importante para jovens pesquisadores em início de carreira, pois permite que, na qualidade de pareceristas, desenvolvam habilidades metodológicas e de escrita, poder de síntese e julgamento crítico, resultando em um círculo virtuoso que forma melhores autores.

As conclusões sobre avaliação por pares a que chegaram os estudos não significam, entretanto, que o processo é totalmente confiável e livre de erros. Pelo contrário, a avaliação por pares, por definição, é um trabalho extremamente especializado, pode ser moroso, não transparente ou demasiadamente crítico, não é livre de vieses e pode não detectar comportamentos antiéticos como plágio ou resultados fabricados. Assim, surgem críticas e mecanismos alternativos para substituí-la. Outros posts recentes neste blog analisam em detalhes estes aspectos.

Um recente caso chamou a atenção da comunidade científica internacional, quando em novembro de 2014 o reputado publisher de quase três centenas de periódicos em acesso aberto baseado no Reino Unido, BioMed Central, descobriu evidências de tentativa de manipulação do processo de revisão por pares de vários periódicos que publica. Após minucioso trabalho de investigação, descobriu-se que 43 artigos haviam sido publicados com base em revisões falsas produzidas por pareceristas forjados. Os artigos afetados estão sendo retratados, em comum acordo com as instituições a que pertencem seus autores. O mais importante, entretanto, é descobrir e revelar o esquema por trás das fraudes.

Aparentemente, a manipulação de pareceres contou com a intermediação de escritórios que oferecem serviços de revisão de idioma e assistência pré-submissão aos autores. Não se sabe, entretanto, até que ponto os autores dos artigos estavam a par das revisões forjadas. É possível que eles tenham utilizado o trabalho destas agências em bona fide e acabaram prejudicados. A BioMed Central, entretanto, obteve dos autores nomes de agências que, além de realizar serviços legítimos, oferecem revisões favoráveis mediante o pagamento de taxas.

O problema parece ter assumido maiores proporções, além do BioMed Central, haja visto que o Committee on Publication Ethics (COPE) emitiu uma declaração3 afirmando que “se tornou ciente de sistemáticas tentativas inapropriadas de manipular os processos de revisão por pares de vários periódicos em diferentes editoras.” O COPE informa que estes periódicos estão revisando seus manuscritos para determinar quais artigos devem ser retratados.

A denominada “crise da revisão por pares” desencadeada por notícias de fraude, má conduta ética e também pelo aumento do número de publicações e baixa qualidade de revisões é, na opinião de especialistas da área, parte do processo, e ao invés de prejudicar sua reputação, na verdade a fortalece.

A avaliação por pares, todavia, segue como o mecanismo endossado pela comunidade científica e, mais recentemente, por outros setores da sociedade, como aquele que assegura a confiabilidade, qualidade e originalidade dos documentos. A má conduta ética por parte de alguns não deve minar a reputação do processo, que baseia- se fundamentalmente na confiança entre editores, autores e pareceristas.

Será publicado neste espaço uma série de posts sobre o tema, que tem por objetivo retratar a opinião dos atores da cadeia editorial sobre como fortalecer e melhorar o processo; mostrar como trabalham as organizações, sociedades e outras instituições para contribuir com a melhoria da avaliação por meio de guias, tutoriais e manuais de boas práticas; novos produtos e serviços disponíveis aos editores, autores e pareceristas para tornar o processo mais justo e transparente; e entrevistas com editores e autores brasileiros sobre o tema.

Notas

1 Peer Review Survey 2009. Sense about Science. 2009. Available from: http://www.senseaboutscience.org/data/files/Peer_Review/Peer_Review_Survey_Final_3.pdf

2 KENNEDY, D. Intelligence Science: Reverse Peer Review? Science. 2004, vol. 303, n°5666, p. 1945. DOI: 10.1126/science.303.5666.1945

3 COPE statement on inappropriate manipulation of peer review processes. Committee on Publication Ethics. Available from: http://publicationethics.org/news/cope-statement-inappropriate-manipulation-peer-review-processes

Referências

350 anos de publicação científica: desde o “Journal des Sçavans” e “Philosophical Transactions” até o SciELO. SciELO em Perspectiva. [viewed 22 March 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/03/05/350-anos-de-publicacao-cientifica-desde-o-journal-des-scavans-e-philosophical-transactions-ate-o-scielo/

Artigo analisa a saturação dos revisores por pares. SciELO em Perspectiva. [viewed 24 March 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/01/22/artigo-analisa-a-saturacao-dos-revisores-por-pares/

Avaliação por pares: modalidades, prós e contras. SciELO em Perspectiva. [viewed 24 March 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/03/27/avaliacao-por-pares-modalidades-pros-e-contras/

Cienciometria de avaliadores – serão finalmente reconhecidos?. SciELO em Perspectiva. [viewed 24 March 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/05/14/cienciometria-de-avaliadores-serao-finalmente-reconhecidos/

Ética editorial – boas e más práticas científicas. SciELO em Perspectiva. [viewed 14 January 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/09/10/etica-editorial-boas-e-mas-praticas-cientificas/

Ética editorial: as arbitragens fraudulentas. SciELO em Perspectiva. [viewed 14 January 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/02/20/etica-editorial-as-arbitragens-fraudulentas/

MOYLAN, E. Innapropriate manipulation of peer review. BioMed Central blog. 2015. Available from: http://blogs.biomedcentral.com/bmcblog/2015/03/26/manipulation-peer-review/

NICHOLAS, D., and et al. Peer review: still king in the digital age. Learned Publishing. 2015, vol. 28, nº 1, pp. 15-21. DOI: 10.1087/20150104

PATEL, J. Who reviews the reviewers. BioMed Central blog. 2014. Available from: http://blogs.biomedcentral.com/bmcblog/2014/11/26/who-reviews-the-reviewers/

Peer Review and the Acceptance of New Scientific Ideas. Discussion paper from a Working Party on equipping the public with an understanding of peer review. Sense about Science. 2004. Available from: http://www.senseaboutscience.org/data/files/resources/17/peerReview.pdf

Sense about Science. Peer Review and the Acceptance of New Scientific Ideas. London: Sense About Science, 2004. Available from: http://www.senseaboutscience.org/data/files/resources/17/peerReview.pdf

Sense about Science. The nuts and bolts. A guide for early career researchers. London: Sense About Science, 2012. Available from: http://www.elsevier.com/__data/assets/pdf_file/0006/228597/Peer-review_The-nuts-and-bolts.pdf

Trust and Authority in Scholarly Communications in the Light of the Digital Transition. CICS/CIBER. 2013. Available from: http://ciber-research.eu/download/20140115-Trust_Final_Report.pdf

 

lilianSobre Lilian Nassi-Calò

Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

NASSI-CALÒ, L. Avaliação por pares: ruim com ela, pior sem ela [online]. SciELO em Perspectiva, 2015 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/04/17/avaliacao-por-pares-ruim-com-ela-pior-sem-ela/

 

4 Thoughts on “Avaliação por pares: ruim com ela, pior sem ela

  1. Alexandra Lima on April 20, 2015 at 02:36 said:

    Muito bom o artigo!
    Parabéns!

  2. Mais um ótimo do post do SciELO Perspectivas. Discussão atual e relevante. Só me concedo a licença de apontar um errinho de digitação na frase abaixo.

    “Desde a criação dos primeiros periódicos científicos no Século XXVII, os documentos submetidos para publicação deviam ser difundidos e apresentados à avaliação pelos pares.”

    Acho que o blog quis dizer “Século XVII” ao invés de “Século XXVII”

    Saudações!

  3. Pingback: “Minha pesquisa é melhor do que a sua”

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