Por Lilian Nassi-Calò
Recentemente tem havido muitas discussões, inclusive neste blog, sobre o processo de revisão por pares, a etapa mais importante do processo de publicação de periódicos científicos que confere qualidade e credibilidade aos artigos.
Muitos autores defendem a publicação dos pareceres de forma aberta, como comentários em seguida do artigo, alegando que esta prática pode ajudar a controlar fraudes no processo de avaliação, ao mesmo tempo em que permite o reconhecimento público dos pareceristas.
Mais recentemente, pesquisadores têm discutido, também por meio das redes sociais, qual seria o impacto de tornar o processo de peer review mais aberto e transparente. Ademais, a discussão foi ampliada para incluir a revisão de propostas de financiamento a pesquisa (grants). Este tema desperta a atenção tanto da comunidade científica quanto da sociedade civil. Para os pesquisadores, por garantir equidade e objetividade ao processo, e ao público em geral (contribuintes), para garantir que projetos sejam aprovados quanto ao mérito e não por motivos políticos ou para favorecer terceiros, aumentando a confiança da sociedade na pesquisa científica.
Um artigo de Chris Woolston na Nature1 analisa a repercussão de dois trabalhos recentemente publicados sobre a abertura do processo de revisão de grants e mais, a possibilidade de alteração da avaliação de propostas depois da publicação dos resultados.
Acadêmicos tem dificuldades de entender porque algumas propostas de financiamento a pesquisa são aprovadas, enquanto outras não. Estudos apontam várias inconsistências e baixa reprodutibilidade no processo de revisão de grants. Pareceristas atribuem diferentes pesos a aspectos das propostas tais como metodologia, originalidade e viabilidade dos projetos.
Para lidar com estas disparidades, Daniel Mietchen, um biólogo evolucionista no Museu de História Natural de Berlim, Alemanha, sustenta em publicação na PLoS Biology2, entre outras coisas, que propostas de financiamento a pesquisa aprovadas deveriam ser disponibilizadas publicamente. Comentários no Twitter que se seguiram à publicação ora apoiaram, ora desaconselharam a iniciativa, por motivos diversos. O autor do estudo apoia sua hipótese de que abrir os pareceres pode transformar a ciência como um todo tomando por base o fato que os pesquisadores podem comparar suas propostas à de seus colegas, além de abrir perspectivas para cooperação.
O estudo de Mietchen decorre de uma pesquisa sobre transparência no financiamento a projetos científicos da autoria de David Gurwitz e colaboradores, também publicado na PLoS Biology3, realizada com 27 agências de fomento nos cinco continentes. Os autores concluíram que nenhuma delas publica os resultados finais de propostas aprovadas e 18 delas publicam apenas resumos destas. Geralmente, as agências publicam extensos manuais com as regras para obter financiamento, porém, se abstém de reportar sobre as propostas – aprovadas ou não – ou as decisões sobre o financiamento.
Da mesma forma que no processo de avaliação de manuscritos, o minucioso trabalho de revisão de grants é descartado no momento em que a proposta é aprovada ou declinada. Este tempo empregado pelos pareceristas em um trabalho pouco visível e reconhecido causa o denominado “cansaço dos pareceristas”, que são cada vez mais requisitados tendo em vista o crescente número de projetos para analisar. A disponibilização aberta dos pareceres permitiria o reconhecimento público deste trabalho e ajudaria pesquisadores a preparar melhores propostas.
Segundo os autores do artigo já mencionado sobre a transparência na avaliação de projetos, não haveria necessidade de divulgar todos os detalhes dos projetos aprovados. Bastaria reportar o resumo, impacto da pesquisa, nome dos revisores da proposta, resumo das avaliações, valor do financiamento concedido, taxa de aprovação de propostas da agência em questão, e relatório final. Entretanto, mesmo divulgando apenas parte dos dados da proposta, existe certo grau de preocupação por parte dos pesquisadores de que a abertura possa, de alguma forma, comprometer a legitimidade do processo de avaliação. Os autores consideram, por outro lado, que a revisão por pares irá requerer em breve uma nova dimensão em sua legitimidade, o que poderá ser a abertura dos pareceres.
Outra preocupação se refere à confidencialidade dos conteúdos das propostas. Gurwitz e colaboradores afirmam que as agências de fomento consultadas em seu estudo preferem manter confidenciais certos dados das propostas até que os resultados da pesquisa sejam publicados, para evitar que pesquisadores inescrupulosos possam plagiar ideias e projetos, em um ambiente muito competitivo, como é o da pesquisa científica.
A Welcome Trust, importante agência de fomento de pesquisa biomédica, publica atualmente resumos sucintos de muitos dos projetos de pesquisa que aprova. De acordo com o diretor científico Kevin Moses, não há intenção de ampliar a informação, para respeitar a confidencialidade dos pesquisadores e de seus projetos.
A disponibilização dos pareceres pode abrir caminho para outro tipo de avaliação, por exemplo, aquela que ocorre após a publicação, a exemplo da revisão não anônima pós-publicação de artigos, como sugere Hilda Bastian, editora de PLoS Medicine e do PubMed Commons, uma iniciativa que permite postar comentários sobre trabalhos do PubMed após sua publicação. Em seu entender, comentários e críticas abertas podem melhorar a qualidade da pesquisa expondo erros e fraquezas de forma eficiente. Lisa Langsetmo, uma pesquisadora em osteoporose na McGill University em Montreal, Canadá, compartilha das ideias de Bastian, sugerindo duas etapas de revisão, sendo “a primeira cega e anônima e a segunda, pós-publicação, aberta e permanente”.
No Brasil ainda prevalece o sistema cego (duplo ou simples) de revisão por pares em artigos de periódicos e propostas de financiamento à pesquisa, e a ideia de abrir os comentários dos revisores ainda não desperta interesse na comunidade científica.
Notas
1 WOOLSTON, C. What would happen if grant reviews were made public? Nature. 2015, vol. 517, nº 247. DOI: 10.1038/517247f
2 MIETCHEN, D. The transformative nature of transparency in research funding. PLoS Biol. 2014, vol. 12, nº 12. DOI: 10.1371/journal.pbio.1002027.
3 GURWITZ, D., MILANESI, E., KOENIG T. Grant application review: The case of transparency. PLoS Biol. 2014, vol. 12, nº 12. DOI: 10.1371/journal.pbio.1002010.
Referências
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Cienciometria de avaliadores – serão finalmente reconhecidos?. SciELO em Perspectiva. [viewed 14 January 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/05/14/cienciometria-de-avaliadores-serao-finalmente-reconhecidos/
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Ética editorial: as arbitragens fraudulentas. SciELO em Perspectiva. [viewed 14 January 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/02/20/etica-editorial-as-arbitragens-fraudulentas/
GURWITZ, D., MILANESI, E., KOENIG T. Grant application review: The case of transparency. PLoS Biol. 2014, vol. 12, nº 12. DOI: 10.1371/journal.pbio.1002010.
MIETCHEN, D. The transformative nature of transparency in research funding. PLoS Biol. 2014, vol. 12, nº 12. DOI: 10.1371/journal.pbio.1002027.
PubMed Commons: NLM lança versão piloto que permite comentários abertos sobre artigos. SciELO em Perspectiva. [viewed 15 January 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2013/12/20/pubmed-commons-nlm-lanca-versao-piloto-que-permite-comentarios-abertos-sobre-artigos/
WOOLSTON, C. What would happen if grant reviews were made public? Nature. 2015, vol. 517, nº 247. DOI: 10.1038/517247f
Sobre Lilian Nassi-Calò
Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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