Por Luiz Augusto Campos e Bernardo Buarque de Hollanda
O mundo científico vem passando por uma revolução silenciosa. Depois de séculos baseadas em padrões centrados no segredo dos laboratórios e no anonimato da avaliação científica, diversas disciplinas migram paulatinamente para o que chamamos de Programa da Ciência Aberta (PCA). Isso envolve uma série de políticas de transparência que abrangem desde a disponibilização de dados usados nas pesquisas até a abertura de pareceres no processo de avaliação de artigos.
No entanto, poucos sabemos ainda sobre o impacto dessas transformações nas diferentes áreas das Humanidades, que congregam desde campos como a Filosofia e História até Ciências Sociais e Humanas, como a Sociologia e a Psicologia, passando pelas áreas de Ciências Sociais Aplicadas, como Administração, e Educação. Foi com o objetivo de monitorar esse processo e seus principais desafios que o Programa SciELO realizou entre os dias 17 e 18 de maio o evento A Ciência Aberta nas Humanidades. No total, foram seis mesas com mais de duas dezenas de editores e especialistas discutindo as decorrências do PCA para a área, seus potenciais e limites.
A primeira mesa foi dedicada aos desafios do PCA nas Humanidades. O diretor do programa SciELO, Abel Packer, e a vice-diretora da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC), Lia Machado Fialho, apresentaram dados sobre a adesão dos periódicos da Plataforma a práticas de ciência aberta. Apesar de lenta, a incorporação dessas práticas na coleção não está muito aquém do que acontece em outras áreas. Ademais, há toda uma pluralidade e criatividade nesse processo, incentivada pela mesa como um todo. Finalmente, a professora Fernanda Beigel (Universidade de Cuyo) destacou a importância em se considerar as desigualdades regionais e internacionais nesse processo de difusão do PCA pelas Humanidades.
O primeiro dia teve continuidade com a Mesa 2, dedicada à divulgação e à visibilidade da produção científica. A mesa contou com quatro participantes – Natália Padovani (Universidade Estadual de Campinas, Unicamp), da revista Cadernos Pagu, Marcus Cueto (Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz), da revista História, Ciências e Saúde Manguinhos, Haroldo Ramanzini (Universidade Federal de Uberlândia, UFU), da Revista Brasileira de Política Internacional, e Sabine Righetti (Unicamp), da Agência Bori. Todos exploraram diversos dos desafios envolvidos na comunicação científica, seja a necessidade de periódicos estruturados com suporte de recursos humanos, seja uma política editorial que se preocupe com o alcance e o impacto de suas publicações, até a capacidade para operar na interface com as redes sociais e com os formadores da opinião pública.
A terceira e última mesa do dia 17 de maio abordou os servidores de preprints, repositórios de artigos que propõem a divulgação dos manuscritos antes mesmo de sua avaliação por pares. A professora Suzana Gomes (Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG), editora do periódico Educação em Revista, apresentou a experiência editorial não só da aceitação como da adoção do preprint como condição para submissão de manuscritos em sua revista. Ainda que se coloque favorável ao PCA e que seu periódico já introduza suas diretrizes, o prof. Marcelo Bispo (Universidade Federal da Paraíba, UFPB), editor da Revista de Administração Contemporânea (RAC-ANPAD), trouxe considerações mais céticas quanto ao modo de implantação da Ciência Aberta, tendo em vista o requisito imperativo como suas regras são colocadas aos editores. A comentadora da mesa, professora Andréa Slemian, editora da Revista Brasileira de História (RBH-ANPUH) e coordenadora do Fórum de Editores de História, trouxe dados referentes a ainda tímida adesão da sua área aos preprints. Para tanto, ponderou que o argumento da celeridade na publicização dos resultados não constitui uma necessidade tão premente para os historiadores quanto em outros setores da produção científica.
O segundo dia teve continuidade com a discussão das políticas de divulgação científica implementadas pelas revistas. Adrian Lavalle, professor da Universidade de São Paulo (USP) e editor da Brazilian Political Science Review, discutiu os avanços da revista em relação à transparência de bases de dados, o que rendeu ao periódico uma premiação da plataforma Dataverse, de Harvard. Sua equipe conta com um editor-curador de bases, que avalia a qualidade e a replicabilidade antes de elas serem enviadas ao repositório virtual. Laura Moutinho, também professora da USP e coeditora da revista Vibrant, destacou as especificidades da antropologia nesse debate, haja vista sua distância tradicional em relação aos dados quantitativos e à centralidade da subjetividade do etnógrafo no processo de pesquisa. Manoel Galdino, diretor da ONG Transparência Brasil, destacou as diferenças conceituais entre transparência, reprodutibilidade e replicabilidade das bases de dados, e de como é sempre importante manter claro o que se quer com a disponibilização de bases. O professor José Gondra (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, e Revista Brasileira de História da Educação) moderou a mesa, chamando a atenção para a pluralidade interna das Humanidades e da necessidade de remodelar o PCA para cada uma das suas disciplinas.
A mesa 2 do dia 18/5 abordou o importante e controvertido tema da abertura de pareceres. Os quatro participantes – Paula Mendonça (Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, e periódico Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências), Cristina Wolff (Universidade Federal de Santa Catarina, USFC, e Revista Estudos Feministas), Lillian Nassi-Calò (Comunicação Científica em Saúde/Bireme) e Valdei Araújo (UFOP e RBH-ANPUH) – debateram desde experiências concretas de adoção progressiva de pareceres que abdicam do anonimato, até aspectos mais críticos das disputas, dos embaraços e das concorrências que a abertura da identidade de autor e de parecerista pode trazer. Alternativas intermediárias entre o double blind peer review – considerado durante muito tempo o padrão ouro da publicação científica – e a abertura irrestrita da autoria dos intervenientes também foram aventadas, bem como as formas pelas quais as revistas podem estruturar, formalizar e registrar o diálogo construtivo entre as partes envolvidas em tal tipo de avaliação.
A mesa 3 do segundo e último dia trouxe à tona a crucial temática da Sustentabilidade e financiamento dos periódicos. Os quatro integrantes – Jimena Beltrão (Museu Paraense Emílio Goeldi e periódico Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi), Adriano Codato (Universidade Federal do Paraná, UFPR, e Revista de Sociologia e Política), Elaine Neiva (Universidade de Brasília, UnB, e periódico Psicologia: Teoria e Pesquisa) e Jorge Carneiro (Fundação Getulio Vargas, FGV, e Revista de Administração de Empresas) – apresentaram desde a dificuldade concreta de sobrevivência por que passam determinadas revistas, em meio à atual conjuntura de escassez de apoio das agências de fomento, até discussões de fundo sobre a viabilidade financeira de a área de Humanidades adotarem taxas por processamento de artigos, resvalando ao final para reflexões mais amplas sobre o caráter público/privado do ensino superior no país.
Findos os dois dias de debates, que chegaram a ser acompanhados ao vivo por cerca de 150 editores, e que já contam com centenas de visualizações no canal do SciELO no YouTube, avalia-se de modo muito positivo a contribuição que o evento proporcionou à comunidade de editores no país. O formato adotado, com mesas pontuais, de duração de uma hora, ainda que não esgote a profundidade dos tópicos, permitiu abarcar uma amplitude de temas e uma quantidade importante de subáreas e de editores representados.
Acreditamos que se tratou de uma oportunidade especial para o conhecimento mútuo do estado da arte nas Humanidades, com um melhor entendimento geral da agenda da Ciência Aberta, de sua incorporação paulatina, bem como das especificidades de suas respectivas subáreas. Isso foi feito zelando pelos critérios de diversidade na representação das revistas, das regiões e das áreas, assegurando o princípio da pluralidade de visões sobre o tema e, por fim, dando elementos para que se possa subsidiar doravante as mudanças necessárias ao trabalho dos editores-chefes de periódicos pertencentes à coleção SciELO.
Referências
A experiência da revista Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências com abertura de pareceres [online]. Figshare. 2022 [viewed 09 June 2022]. Available from: https://scielo.figshare.com/articles/presentation/A_experi_ncia_da_revista _Ensaio_Pesquisa_em_Educa_o_em_Ci_ncias_com_abertura_de_pareceres/19794487
As linhas prioritárias de ação do Programa SciELO face à inexorabilidade da Ciência Aberta [online]. Figshare. 2022 [viewed 09 June 2022]. Available from: https://scielo.figshare.com/articles/presentation/As_linhas_priorit_rias _de_a_o_do_Programa_SciELO_face_inexorabilidade_da_Ci_ncia_Aberta/19786321
Desafios da Ciência Aberta nas Humanidades [online]. Figshare. 2022 [viewed 09 June 2022]. Available from: https://scielo.figshare.com/articles/presentation/Desafios_da_Ci_ncia_Aberta_nas_Humanidades/19782490
Disponibilização e replicação de dados – Brazilian Political Science Review [online]. Figshare. 2022 [viewed 09 June 2022]. Available from: https://scielo.figshare.com/articles/presentation/Disponibiliza_o_e_replica_o_de_dados_-_Brazilian_Political_Science_Review/19798906
Divulgação Científica e a Ciência Aberta: a experiência de História, Ciências, Saúde – Manguinhos [online]. Figshare. 2022 [viewed 09 June 2022]. Available from: https://scielo.figshare.com/articles/presentation/Divulga_o_Cient_fica _e_a_Ci_ncia_Aberta_a_experi_ncia_de_Hist_ria_Ci_ncias_Sa_de_Manguinhos/19794418
Sustentabilidade – Psicologia: Teoria e Pesquisa [online]. Figshare. 2022 [viewed 09 June 2022]. Available from: https://scielo.figshare.com/articles/presentation/Sustentabilidade_-_Psicologia_Teoria_e_Pesquisa/19798897
Sustentabilidade – Revista de Sociologia e Política [online]. Figshare. 2022 [viewed 09 June 2022]. Available from: https://scielo.figshare.com/articles/presentation/Sustentabilidade_-_Revista_de_Sociologia_e_Pol_tica/19795408
Links externos
SciELO – YouTube: https://www.youtube.com/c/SciELONetwork
A Ciência Aberta nas Humanidades: https://eventos.scielo.org/humanidadesca/
Sobre Bernardo Borges Buarque de Hollanda
É professor adjunto da Escola de Ciências Sociais (FGV-CPDOC). É pós-doutor pela Maison des sciences de l’homme de Paris (Bourse Hermès-2009) e pela Universidade de Birmingham (Rutherford Fellowship – 2018). É membro do conselho da Associação Internacional de História Oral (International Oral History Association, IOHA) e editor das revistas Estudos Históricos e Words & Silences. É secretário geral da Associação Brasileira de História Oral. Suas principais áreas de interesse são: história social do futebol e torcidas organizadas; modernismo e vida literária no Brasil; cultura brasileira – crítica e interpretação; pensamento social e história intelectual.
Sobre Luiz Augusto Campos
Luiz Augusto Campos é professor de Sociologia e Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), e doutor pela mesma instituição. É coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e editor-chefe da revista DADOS. Suas pesquisas focam na interface entre raça e política.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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