Em setembro de 2018, instituições e organizações de ciência da Europa com o apoio do European Research Council, a Comissão Europeia e a cOAlition S lançaram o Plano S para acelerar a transição para o acesso aberto. O Plano S estabelecia que, a partir de janeiro de 2020, as publicações científicas resultantes de pesquisa financiada com recursos públicos deveriam ser publicadas sem embargo em periódicos ou plataformas de acesso aberto. Pouco depois, Richard Sever, do Cold Spring Harbor Publisher e do bioRxiv sugeriu utilizar servidores de preprints como alternativa aos periódicos no Plano S: “bastaria impor através de um mandato a deposição de preprints […]. Benefício colateral: acelerar a ciência massivamente…”1 e o denominou Plano U.
A cOAlition S, em 2023, elaborou uma extensa proposta para atualizar e acompanhar as mudanças na ciência e no panorama mundial ocorridas desde 2020. Elas incluem, entre outras, a publicação de informes de avaliação por pares, de todas as versões dos artigos resultantes das pesquisas financiadas pelo consorcio e o incentivo para utilização de servidores de preprints. A proposta encontra-se em análise pelos financiadores do consórcio e se aprovada, passará a vigorar a partir de junho de 2024.
A Fundação Bill e Melinda Gates, que faz parte da cOAlition S, anunciou recentemente a publicação de sua nova política de Acesso Aberto,2 que passa a vigorar a partir de 1° de janeiro de 2025. O ponto principal de sua nova política reside no fato de que não financiará mais APCs (article processing charges, taxas de processamento de artigos) de periódicos de acesso aberto – e priorizará a adoção de preprints, se antecipando à decisão da Comissão Europeia: manuscritos deverão ser disponibilizados tão logo estejam concluídos em um servidor de preprints sob uma licença CC BY.
Robert Harington discute em Preprints, Journals and Openness: Disentangling Goals and Incentives4 como o anúncio da Fundação Gates repercutiu na comunidade científica, motivando uma série de considerações sobre acesso aberto e suas formas de financiamento, avaliação por pares e em última análise, como estas mudanças influenciam a avaliação e a integridade da pesquisa.
Muitos comentários após o anúncio sobre a adoção de preprints pela Fundação Gates se referem à ideia de que periódicos não seriam mais necessários ou estariam obsoletos no ecossistema acadêmico, uma vez que podem receber avaliação por pares (aberta) não restrita a dois ou três pareceres e permitem atualizações.
Este pressuposto é equivocado, pois as novas regras estabelecem a publicação imediata como preprint, porém não excluem artigos em periódicos ou arquivados em repositórios de acesso aberto, sendo uma escolha dos pesquisadores. Em suma, como muitos, Harington acredita que periódicos e preprints são componentes do ecossistema de comunicação científica que coexistem perfeitamente bem.
Por sua vez, Ann Michael e Dan Pollock, argumentam em Gates Policy Refresh: What Would Success Look Like?5 que o corte no pagamento de APCs não é de natureza financeira, porém de “alinhamento da missão da Fundação Bill e Melinda Gates”. No entanto, as implicações da nova política para os publishers são potencialmente significativos. Não apenas referente à perda da receita, que não é substancial (foi calculado que os projetos de pesquisa financiados pela Fundação Gates geram ao redor de 4.000 artigos/ano, o que representa um percentual pequeno do total publicado).
Os publishers teriam como opção oferecer isenções parciais ou totais a estes artigos ou expandir seus esforços para firmar acordos de “publicação pura”6 com universidades e instituições de pesquisa. Aos publishers, resta saber como a inclusão de preprints na política de acesso aberto irá impactar o fluxo editorial, de avaliação por pares e de publicação.
Entre as justificativas para a nova política, menciona-se que a publicação em acesso aberto se mantém inalterada por mais de uma década e propiciou o surgimento de práticas lesivas como avaliação por pares questionável, fábricas de artigos (paper mills) e preços (APCs) não verificáveis. Ao priorizar o uso de preprints, a Fundação pretende (1) priorizar o acesso à pesquisa propriamente dita e não a um periódico em particular; (2) abordar as desigualdades dos atuais modelos de publicação ao remover o financiamento de APCs; e (3) apoiar uma estrutura de acesso aberto para garantir que artigos e dados estejam disponíveis a um público mais amplo. Estes objetivos seriam alcançados por meio do uso de preprints, sem, entretanto, abolir os artigos de periódicos.
O principal motivo para esta decisão reside no fato que durante a pandemia de covid-19, os preprints tiveram um papel central na comunicação entre a comunidade científica, órgãos governamentais e organizações internacionais para desenvolver vacinas e tratamentos. Ademais, este método alternativo de publicação de resultados de pesquisa pode ser visto como um “experimento”.
Ademais, a Fundação Gates está trabalhando com a F1000 (que pertence ao publisher Taylor & Francis) no lançamento de seu próprio repositório de preprints, denominado VeriXiv, previsto para começar a operar em agosto deste ano. A Gates já dispõe de uma plataforma para publicação de artigos (financiados pela Fundação) que realiza avaliação por pares aberta pós-publicação. a Gates Open Research.
Uma questão relevante diz respeito à versão de registro.7 O valor do artigo de periódico como versão de registro ideal é um tema em discussão. Independente dos argumentos a favor dos preprints, sua adoção dependerá da opinião dos pesquisadores sobre seu valor relativo como versão de registro, e de como seu uso poderá aumentar, tendo em vista a evolução da publicação científica.
Segundo a nova política da fundação, é mandatório o uso de uma licença CC-BY 4.0 ou equivalente, e os direitos autorais devem pertencer aos autores do artigo e não ao publisher, para assegurar que qualquer usuário possa copiar, distribuir, transformar e desenvolver a partir do material para qualquer finalidade (inclusive comercial) sem a necessidade de permissão ou taxas. Publishers que não permitem a cessão dos direitos aos autores não devem ser escolhidos pelos beneficiários.
A Fundação considera que o modelo atual de publicação de periódicos não é sustentável, e opera contra sua missão e prioridades, sendo particularmente desvantajosa para as populações que o investimento da Fundação está destinado a apoiar.
O post de Michael e Pollack5 menciona o fato de que a cOAlition S estaria considerando também abolir modelos baseados em APC, porém no documento final da proposta de renovação do Plano S, submetida em outubro de 2023 e a ser analisada pelo consorcio de financiadores em junho de 2024, consta que as APCs serão mantidas “por algum tempo”.
A nova política da Fundação Gates representa um experimento de certa forma restrito, mas potencialmente valioso, pois permitirá observar os resultados e métricas que serão produzidas, e se a comunidade científica está pronta para a mudança que ela propõe. De qualquer forma, terá sido um aprendizado.
6. “…um contrato é um acordo de publicação pura se o pagamento acordado permitir que os autores de uma instituição publiquem em periódicos de acesso totalmente aberto.” Tradução livre a partir da definição citada em HINCHLIFFE, L.J. The “Pure Publish” Agreement. The Scholarly Kitchen, 2020 [viewed 08 May 2024]. Available from: https://scholarlykitchen.sspnet.org/2020/02/20/pure-publish/
7. Versão de registro de um artigo é a versão final publicada, sendo versões eletrônicas em sua maioria. A versão de registro (normalmente o PDF do publisher) é o registro mais atualizado da publicação.
Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.
NASSI-CALÒ, L. Sobre preprints, periódicos, acesso aberto e avaliação da pesquisa: as repercussões da decisão da Fundação Gates [online]. SciELO em Perspectiva, 2024 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2024/05/08/repercussoes-da-decisao-da-fundacao-gates/
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