Cobertura de preprints de pesquisa biomédica em meio ao coronavírus: 6 coisas a saber [Originalmente publicado no Journalist’s Resource em abril/2020]

Por Denise-Marie Orway

<em>Imagem PixabayOpenClipart Vectors<em>

À medida que um novo coronavírus se espalha pelos continentes, vários pesquisadores biomédicos voltaram seu foco para a pandemia e seus impactos. As plataformas de publicação on-line estão ajudando a compartilhar rapidamente suas descobertas, para que profissionais médicos, líderes governamentais e outros possam responder mais rapidamente com o objetivo de prevenir, tratar e controlar infecções.

Os servidores de preprint permitem que pesquisadores de todo o mundo publiquem suas descobertas para que qualquer pessoa em qualquer parte possa acessar, em um só lugar, milhares de novos artigos acadêmicos sobre tópicos de saúde, como o coronavírus e a doença que causa, a COVID-19.

Preprints são trabalhos de pesquisa que não foram publicados em um periódico acadêmico. Eles também não foram submetidos à avaliação por pares, o que significa que especialistas independentes não analisaram e criticaram o artigo. Sobreviver à avaliação por pares não garante que uma pesquisa seja de alta qualidade, mas o processo foi projetado para controle de qualidade.

Embora a disponibilização de preprints ao público traga muitos benefícios aos pesquisadores, a comunidade científica manifestou preocupação com os jornalistas em interpretar mal as descobertas e ignorar ou excluir o contexto crítico para a compreensão dos resultados preliminares de uma pesquisa. Eles também temem que jornalistas, que não são treinados para identificar falhas metodológicas e alegações enganosas – questões que os especialistas pegariam durante a avaliação por pares – irão embasar alguma cobertura noticiosa em descobertas problemáticas.

Tais erros e deficiências são particularmente problemáticos durante uma pandemia mortal, quando o público confia nos meios de comunicação para obter informação precisa e atualizada, incluindo orientações sobre como permanecer saudável e seguro.

Na medida em um dilúvio de novas pesquisas relacionadas ao coronavírus inunda servidores de preprint, como o servidor de ciências da saúde medRxiv e o servidor de ciências biológicas bioRxiv, contatamos especialistas para ajudar a explicar como os jornalistas devem usar os preprints. Também pedimos dicas sobre como jornalistas podem evitar erros.

Abaixo, destacamos seis coisas importantes que os repórteres devem saber sobre preprints, com base em entrevistas com duas pessoas com vasta experiência em pesquisa biomédica: Bill Hanage, professor associado de epidemiologia na Harvard T.H. Chan School of Public Health, e John R. Inglis, que lançou e gerenciou vários periódicos acadêmicos e, como diretor executivo da organização sem fins lucrativos Cold Spring Harbor Laboratory Press, cofundou o medRxiv e o bioRxiv.

1. Servidores de preprints em outras disciplinas acadêmicas – física, matemática e ciências sociais, por exemplo – existem há décadas. Demorou muito mais tempo para os pesquisadores que estudam ciências da vida e da saúde se sentissem confortáveis com a ideia de compartilhar conhecimento desta maneira, em parte porque os pacientes poderiam ser prejudicados se os médicos alterassem os tratamentos ou caso se auto tratassem com base nos resultados de preprints.

O medRxiv (se pronuncia “med-arcaiv”) começou a aceitar trabalhos em meados de 2019. O bioRxiv (se pronuncia “baio-arcaiv”) foi lançado em 2013. Inglis diz que os dois servidores de preprint agora hospedam centenas de documentos relacionados ao coronavírus, muitos dos quais foram postados desde o final de janeiro.

Os preprints estimularam a conscientização e a avaliação de novas pesquisas “de uma forma que nunca havia acontecido antes em um surto viral”, explica. Ele diz que é difícil encontrar preprints nas ciências biológicas durante o surto de 2003 da síndrome respiratória aguda grave e o surto de 2012 da Síndrome Respiratória do Oriente Médio.

Mais de 90% dos artigos de periódicos que examinam a epidemiologia da SARS não foram publicados até o final da epidemia em 2003, de acordo com um estudo publicado na PLOS Medicine em 2018.

2. Preprints geralmente passam por uma triagem básica. Mas eles não são avaliados por pares.

A maioria dos servidores de preprint são projetos sem fins lucrativos executados por acadêmicos ou instituições acadêmicas. Seu principal objetivo é simples: ajudar os pesquisadores a disseminar seu trabalho rapidamente, pois pode levar semanas ou anos para que um artigo seja avaliado por pares e publicado em um periódico acadêmico.

A triagem dos preprints geralmente é superficial, concluída em alguns dias. Para ser publicado nos servidores de preprint medRxiv e bioRxiv, um artigo deve passar por uma avaliação básica que busca identificar plágio, conteúdo ofensivo, conteúdo não científico e material que possa representar risco à saúde. Os examinadores não avaliam os métodos, conclusões ou a qualidade de um artigo.

Hanage diz que a triagem de preprints ajuda a proteger contra “coisas obviamente desonestas”. Ele e Inglis alertam que os jornalistas devem examinar os preprints com cautela.

Segundo Inglis, “quem lê um preprint está vendo como seus autores descrevem o que fizeram e como interpretam os resultados. Porém, a avaliação por pares pode fazer muitas coisas em benefício dos autores: detectar erros, discordar da interpretação, desmantelar ou redimensionar declarações, cortar partes do texto, solicitar mais experimentos e dados, e muito mais.”

3. Os resultados nos preprints são preliminares e, às vezes, estritamente teóricos. Os jornalistas devem deixar isso claro em sua cobertura.

Os jornalistas devem evitar caracterizar as descobertas de preprints como fatos estabelecidos. Hanage aponta para uma recente notícia sobre um preprint examinando o coronavírus no Reino Unido, como um exemplo do que não fazer. O preprint descreve um modelo epidemiológico desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Oxford.

“Este é um modelo que procura examinar como seria a pandemia no Reino Unido se supuséssemos que houve um número muito grande de infecções leves e não detectadas, de modo que a imunidade da população já existisse, até certo ponto”, explica Hanage, acrescentando que a cobertura da agência de notícias “sugeria que estas eram as conclusões, e não as possibilidades teóricas, considerando dados adequadamente manipulados”.

Um público desinformado é o resultado de relatos imprecisos sobre preprints. Hanage diz: “Atualmente, não há absolutamente nenhuma evidência de imunidade ao nível da população, e não haverá, até que uma boa pesquisa sorológica seja concluída.

Para deixar claro que os resultados do preprint são preliminares, Inglis diz que os jornalistas devem explicitamente apontá-lo em suas histórias. “Eles devem fazer esta afirmação, é claro, mas ajudaria ainda mais solicitar e citar a opinião de pelo menos um especialista independente e incluir quaisquer ressalvas que possam ter”, diz ele.

4. O conhecimento dos métodos de pesquisa é importante para avaliar se vale a pena fazer a cobertura de um preprint.

Hanage diz que os jornalistas que não possuem esta experiência não devem cobrir pesquisas postadas como preprint sobre tópicos de saúde e biológicos, como pandemias de doenças infecciosas e a COVID-19.

“Não chegue perto se você não é um jornalista de ciências”, alerta. “Evite a prática do ‘churnalismo’1, onde você acaba relatando outras notícias e controvérsias, em vez de fatos concretos. Pergunte se as conclusões [de um trabalho de pesquisa] são contrárias a tudo o que achamos que sabemos – e lembre-se de que algo muito surpreendente geralmente está errado.”

Jornalistas com conhecimento de ciência, medicina e métodos de pesquisa são mais capazes de detectar falhas em preprints sobre tópicos de saúde e ciências da vida. Eles também entendem como as descobertas de um preprint podem mudar drasticamente como resultado do processo de avaliação por pares.

“Ajuda se os jornalistas estiverem cientes de como o processo científico e a avaliação por pares funcionam e lembre-se de que o que eles acham tão atraente em um preprint pode não sobreviver ao escrutínio da comunidade”, explica Inglis. Ele diz que os jornalistas podem ter uma ideia de como um preprint é recebido imediatamente por outros pesquisadores, lendo comentários deixados no preprint e suas respostas no Twitter.

5. Consultar pesquisadores que não participaram do estudo, mas têm experiência no tópico do estudo, pode ajudar os jornalistas a avaliar se um preprint deve ser noticiado e como a cobertura deve ser enquadrada

Ao avaliar um preprint, Hanage sugere que os jornalistas descubram se seus autores são respeitáveis e já fizeram pesquisas de alta qualidade.

“Se assim for”, ele diz, “então você pode requisitar uma pequena avaliação por pares informal. Ligue para outros cientistas da mesma área e pergunte se eles classificam o trabalho do preprint como credível. Em caso positivo, relate, enfatizando a natureza preliminar das descobertas. ”

Inglis observa que provavelmente será mais difícil para os jornalistas avaliar a reputação de alguns pesquisadores da COVID-19. Muitos dos que postaram no medRxiv e no bioRxiv são cientistas chineses que estavam na linha de frente nos primeiros meses do surto, diz ele. “A maioria nunca postou em um servidor de preprints antes e não é bem conhecida no ocidente”, diz ele.

Inglis recomenda que os repórteres tenham o hábito de conversar com pesquisadores. “Para evitar relatar informação de má qualidade”, diz ele, “um jornalista deve ter um grupo de especialistas com quem procurar aconselhamento, lembrando que mesmo os especialistas não são especialistas em tudo: um epidemiologista e um biólogo molecular podem estudar o mesmo vírus, mas podem não estar aptos a avaliar profissionalmente o trabalho um do outro.”

6. Preprints são ocasionalmente retirados do servidor por seus autores.

Um dos principais benefícios da publicação de preprints on-line é que permite aos autores receberem feedback rápido por meio de postagens no servidor da web e nas mídias sociais. “Toda a comunidade científica pode julgar novos trabalhos por si próprios e responder adequadamente – criticando-os, testando-os, ampliando-os etc.”, diz Inglis.

Às vezes, o feedback deixa claro que os pesquisadores têm mais trabalho a fazer. Quase 80.000 artigos foram postados no bioRxiv desde seu lançamento, seis anos atrás, e menos de 90 foram retirados. “A maioria foi retirada por seus autores porque eles descobriram um motivo para duvidar dos resultados postados ou porque nem todos os autores nomeados concordaram com a submissão, o que é uma condição para a postagem”, explica Inglis. “Desde que começou o dilúvio de artigos da COVID-19, dois foram retirados [do bioRxiv]. ”

Um dos dois artigos retirados recentemente afirmou encontrar semelhanças entre o coronavírus e o HIV e sugeriu que o coronavírus poderia ter sido projetado por humanos. Os autores perceberam que o estudo “apresentava falhas analíticas quando centenas de cientistas postaram comentários no Twitter e no site bioRxiv dizendo isso”, diz Inglis. “O outro [artigo] foi retirado porque os autores achavam que agora tinham um conjunto maior de dados de pacientes, do qual poderiam derivar diferentes conclusões.”

Nota

1. Nota da tradutora: Do inglês “churnalism” é um termo pejorativo para uma forma de jornalismo em que press releases, matérias fornecidas por agências de notícias e outras formas de material pré-acondicionado, em vez de notícias relatadas, são usadas para criar artigos em jornais e outras mídias de notícias. (Wikipedia)

Referências

FINE, P., EAMES, K. and HEYMANN, D.L. “Herd Immunity”: A Rough Guide. Clinical Infectious Diseases [online]. 2011, vol. 52, no. 7, pp. 911–916 [viewed in April 15 2020]. DOI: https://doi.org/10.1093/cid/cir007. Available from: https://academic.oup.com/cid/article/52/7/911/299077

FLIER, J.S. Covid-19 is reshaping the world of bioscience publishing [online]. STAT News, 2020 [viewed in April 15 2020]. Available from: https://www.statnews.com/2020/03/23/bioscience-publishing-reshaped-covid-19/

LOURENCO, J., et al. Fundamental principles of epidemic spread highlight the immediate need for large-scale serological surveys to assess the stage of the SARS-CoV-2 epidemic. medRxiv [online]. 2020 [viewed in April 15 2020]. DOI: https://doi.org/10.1101/2020.03.24.20042291. Available from: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.24.20042291v1

PEIPERL, L. Preprints in medical research: Progress and principles. PLoS Med [online]. 2018, vol. 15, no. 4, e1002563 [viewed in April 15 2020]. DOI: https://dx.doi.org/10.1371/journal.pmed.1002563. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5901682/

Links externos

Bill Hanage <https://www.hsph.harvard.edu/william-hanage/>

bioRxiv <https://www.biorxiv.org/>

Churnalism <https://en.wikipedia.org/wiki/Churnalism>

Cold Spring Harbor Laboratory Press <https://www.cshlpress.com/>

COVID-19 SARS-CoV-2 preprints from medRxiv and bioRxiv <https://connect.medrxiv.org/relate/content/181>

Denise-Marie Orway <https://journalistsresource.org/author/denise-marie/>

Harvard T.H. Chan School of Public Health <https://www.hsph.harvard.edu/>

John R Inglis <https://www.cshl.edu/research/faculty-staff/john-r-inglis/>

medRxiv <https://www.medrxiv.org/>

Middle East Respiratory Syndrome (MERS) <https://www.cdc.gov/coronavirus/mers/index.html>

Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS) <https://www.cdc.gov/sars/index.html>

Artigo original

https://journalistsresource.org/tip-sheets/research/medical-research-preprints-coronavirus/

Traduzido do original em inglês por Lilian Nassi-Calò.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

ORDWAY, D.-M. Cobertura de preprints de pesquisa biomédica em meio ao coronavírus: 6 coisas a saber [Originalmente publicado no Journalist’s Resource em abril/2020] [online]. SciELO em Perspectiva, 2020 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2020/04/15/cobertura-de-preprints-de-pesquisa-biomedica-em-meio-ao-coronavirus-6-coisas-a-saber-originalmente-publicado-no-journalists-resource-em-abril-2020/

 

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