Por Hebe Vessuri
Ligados como estão a um modelo editorial do mundo impresso, os periódicos temem que o processo de acesso aberto, que surgiu com a internet, signifique seu fim. Por que isso acontece, em vista do fato de que se poderia pensar que uma instituição que financia um periódico científico deveria buscar o máximo impacto, ou seja, tentar distribuí-lo de forma mais ampla possível afim de ser largamente usado e citado? Uma vez que ser digital e aberto é, precisamente, uma via comprovada para a obtenção destes objetivos, por que o financiador de um periódico científico deveria se preocupar com a possível abertura universal do acesso a este, mesmo que isso signifique entrar em outra dinâmica, perdendo seus (muitas vezes poucos) assinantes reais?
Frequentemente, o acesso aberto não é considerado como tal, porém a ênfase é colocada nas formas pelas quais ele pode afetar as ferramentas de disseminação existentes, os hábitos adquiridos, a distribuição de atores e instituições. O assunto é frequentemente discutido, em relação a periódicos e artigos, como formas canônicas de comunicação científica que estão em risco devido à aparência disruptiva do acesso aberto, que é percebido como uma forma “descontrolada” e, portanto, “ameaçadora” de comunicação. Espera-se, nesses casos, que o acesso aberto se ajuste às formas, regras e rotinas de periódicos e artigos. Como sempre, quando surge uma novidade na história, o novo é visualizado como algo que deveria se comportar como o velho, o familiar, o confortável.
A atual transição para a era digital é tão fundamental quanto aquela produzida pela imprensa no século XV. Consequentemente, e razoavelmente, devemos esperar mudanças que afetem profundamente nossas sociedades, nossos valores culturais, nossos modos de pensar e nossos métodos de administrar coletivamente a memória, e que o façam tão profunda e intensamente quanto o fez a imprensa. Os objetos produzidos, os valores culturais ligados a eles e as relações que as pessoas têm com estes objetos mudam drasticamente. As relações entre os documentos também mudam e, em última análise, a própria sociedade reflete estas transformações em sua própria estrutura econômica e política.
Em relação aos periódicos científicos, vemos que surgem novas formas de publicação, como os mega-journals, que confundem muitas pessoas, porque na verdade eles não se parecem nem se comportam como periódicos. Outras mídias, como o Research Ideas & Outcomes (RIO), publicam diferentes produtos do ciclo de pesquisa, incluindo propostas de projetos, dados, métodos, fluxos de trabalho, software, etc. A crescente visibilidade do conceito de “plataforma de publicação” aponta para profundas transformações nos contextos em que os diálogos ocorrem cada vez mais.
Sem dúvida, os periódicos têm atualmente uma série de funções fundamentais e importantes na produção, validação, preservação e disseminação do conhecimento. No entanto, considerando a perspectiva de transformações profundas, embora em sua maioria ainda imprevisíveis, o que podemos pensar sobre o futuro da comunicação científica? Quais formas podemos prever para ela? Deveríamos tentar manter os periódicos, embora possam não existir em um século? Ou os artigos, embora representem pouco mais que a inevitável interrupção em todos os momentos de uma conversa realizada por meio de uma tecnologia comprometida com a produção em lote? Obviamente, nenhuma resposta é satisfatória quando procura otimizar a produção de conhecimento no futuro (inclusive num futuro próximo).
Não seria mais útil tentar examinar o futuro enfocando estas funções em vez dos formatos de comunicação hoje em vigor, com suas estratégias de sobrevivência? Poder-se-ia, por exemplo, preservá-los e até otimizá-los. Seria possível imaginar como financiá-los, associando-os aos tipos de objetos e processos que melhor atendam às necessidades do “Grande Diálogo” na produção de conhecimento. Isso nos permitiria examinar criticamente a situação atual: o formato dos periódicos não é isento de limitações, falhas e problemas profundos, incluindo suas formas associadas de modelos de negócios. É possível que o artigo, como um momento congelado no discurso científico, logo apareça como mal concebido e desesperadamente desatualizado. A tarefa atual é partir da realidade digital dos documentos e sua gestão, e criar os objetos digitais, instrumentos e processos necessários para aumentar o diálogo entre os pesquisadores.
Nota
1. Nota baseada na leitura “Crystals of Knowledge Production. An Intercontinental Conversation about Open Science and the Humanities” de STERN, N., GUÉDON, J.C. e JENSEN T.W. publicada na Nordic Perspectives on Open Science.
Referência
STERN, N., GUÉDON, J.C. and JENSEN T.W. Crystals of Knowledge Production. An Intercontinental Conversation about Open Science and the Humanities. Nordic Perspectives on Open Science [online]. 2015, vol. 1, ISSN: 2464-1839 [viewed 20 August 2018]. DOI: 10.7557/11.3619. Available from: http://dx.doi.org/10.7557/11.3619
Sobre Hebe Vessuri
Hebe Vessuri é pesquisadora emérita do Centro de Estudos Sociais de Ciência do Instituto de Pesquisa Científica (IVIC) na Venezuela, pesquisadora visitante junto ao Centro de Pesquisa de Geografia Ambiental (CIGA) da Universidad Nacional Autónoma de México, e pesquisadora colaboradora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais na Patagônia, CENPAT-CONICET, Argentina. Vessuri ajudou a fundar programas de pós-graduação em Estudos de Tecnologia e Ciência (STS) na Venezuela e no Brasil, e a Associação Latino-Americana de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia (ESOCITE). Presidiu a comissão de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e a da Reitoria da Universidade das Nações Unidas. Foi vice-presidente da União Internacional de Ciências Antropológicas e Etnológicas (IUAES) e participou de maneira significativa da Comissão de Ética na Ciência da UNESCO, do Conselho Internacional de Governança de Risco (IRGC), do Programa Internacional Para o Desenvolvimento Humano (IHDP) e do Conselho Internacional de Ciências Sociais (ISSC). Em 2017, recebeu o Bernal Prize concedido pela Society for Social Studies of Science (4S).
Este post foi elaborado para o painel “O impacto político e social dos periódicos e das pesquisas que comunicam” da Conferência SciELO 20 Anos.
Traduzido do original em espanhol por Lilian Nassi-Calò.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Leia o comentário em espanhol, por Roy D. Meléndez DVM, MSc.:
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