Em direção ao acesso aberto universal? Por que precisamos de bibliodiversidade em vez de uma “bala de prata”

Por Pierre Mounier

Imagem: dooder.

Nada é provavelmente mais falso do que a representação da comunicação científica como um campo integrado dominado por alguns atores globais em todas as disciplinas, países e comunidades. Quando Jeffrey Beal publicou suas palavras depreciativas sobre SciELO e Redalyc porque, segundo ele, “muitos pesquisadores norte-americanos nunca ouviram falar deles”, ele poderia ter dito o mesmo da Elsevier, porque muitos pesquisadores de humanidades nunca ouviram falar dela, na América do Norte e em outros lugares, para dar outro exemplo que ilustra o quão absurda esta abordagem pode ser, simplesmente porque as práticas de informação e citação dos pesquisadores não são globais, mas amplamente influenciadas por parâmetros locais, em termos de disciplinas, contextos nacionais, redes transnacionais de grupos de pesquisa que compartilham os mesmos métodos, objetos e tipos de instrumentos.

A comunicação científica é influenciada pelas necessidades das sociedades

Mesmo em uma epistemologia não construtivista, onde se toma como certo que a verdade científica tem validade global, admite-se que a pesquisa está em estreita relação com as sociedades locais: dependendo dos principais desafios que enfrentam, as sociedades visam tópicos específicos e apoiam mais pesquisas sobre eles, dão mais importância a algumas disciplinas do que a outras, mas também organizam pesquisas de acordo com culturas nacionais, que podem diferir amplamente. Em outras palavras, particularmente quando a pesquisa é financiada publicamente, o que é o caso na maioria das disciplinas, com poucas exceções, o financiamento nacional tem impacto direto na própria pesquisa científica, pedindo retorno sobre o investimento para o benefício do contribuinte que consente com isso.

Obviamente, o setor de comunicação científica é ainda mais profundamente impactado por fatores socioeconômicos, porque está posicionado na fronteira do setor científico, como um mercado submetido às condições econômicas em geral, mas também como um instrumento crítico na realização do acesso ao conhecimento como um bem comum. Em suma, o setor está na encruzilhada de três demandas: atender eficientemente as necessidades de comunicação dos cientistas com seus pares, ser economicamente sustentável e garantir acesso equitativo, se não universal, ao conhecimento. Para um número limitado de países, principalmente europeus, também é uma indústria altamente capitalizada que gera riqueza e empregos. Esta é a razão pela qual o debate global sobre a transição da comunicação científica para o acesso aberto é tão confuso: implica uma ampla gama de diferentes interessados com diferentes agendas, operando em diferentes contextos nacionais e disciplinares.

O debate sobre Acesso Aberto é confuso

Se é geralmente reconhecido agora que há um movimento geral em todos estes diferentes contextos que leva todas as diferentes partes interessadas em direção ao acesso aberto, uma questão importante permanece em aberto: para qual modelo de publicação em acesso aberto estamos nos dirigindo? No momento, este debate parece uma arena confusa onde cada um tenta empurrar seu próprio modelo baseado em seus próprios interesses ou objetivos: a Comissão Europeia, por exemplo, empurra para o acesso aberto verde baseado em autoarquivamento em repositórios como Zenodo, porque a principal, senão única, razão pela qual eles querem desenvolver o acesso aberto é acelerar drasticamente a transferência de conhecimento dos laboratórios para a indústria, a fim de promover a inovação na indústria europeia e aumentar sua competitividade nos mercados globais. Os governos do Reino Unido e da Holanda apoiam o modelo comercial de acesso aberto dourado, pois são países onde a publicação acadêmica é uma indústria. Muitas universidades apoiam repositórios institucionais pois são instrumentos importantes para manter o controle de seus ativos científicos. As bibliotecas geralmente vão na mesma direção, porque estão enfrentando um desafio importante em termos de financiamento e uso, como consequência da mudança de um sistema baseado em assinatura para um modelo de article processing charge (APC). Os pesquisadores se posicionam de muitas maneiras diferentes, de acordo com sua disciplina, posição em sua carreira, afiliação e até experiências passadas com publishers.

Dourado-Verde: uma oposição Maniqueísta

Também deve ser considerado que há muitas opções diferentes além da tradicional e um pouco maniqueísta oposição verde-dourado. Por exemplo, no chamado “modelo dourado”, mais da metade dos periódicos de acesso aberto indexados pelo DOAJ não exigem pagamento de APC para publicar um artigo. Eles são, na maioria dos casos, subsidiados por instituições e muitos deles são sustentados pelo trabalho voluntário cedido por acadêmicos. Na França, a OpenEdition desenvolveu um modelo econômico freemium1 para diversificar seu fluxo de financiamento e garantir melhor sustentabilidade. A iniciativa canadense PKP tem apoiado milhares de periódicos acadêmicos independentes de acesso aberto que não cobram APC em todo o mundo por meio da sua amplamente conhecida e utilizada ferramenta de publicação, OJS, permitindo que centenas de universidades, sociedades acadêmicas e infraestruturas nacionais construam e desenvolvam sua própria plataforma. Portanto, nada é mais parcial do que a descrição usual do típico “modelo dourado” como uma revista internacional propriedade de uma empresa comercial que cobra um APC alto. Esta situação existe, é claro, mas diz respeito a uma minoria de títulos e é uma pena que, no atual debate sobre o acesso aberto, o modelo comercial dourado de APC sintetize todo o modelo dourado para muitos comentaristas. A falta de compreensão da diversidade de contextos e modelos combinada com a variedade de agendas impostas pelas diferentes partes interessadas abre caminho para os discursos que advogam por uma única solução apresentada como a bala de prata que promete alcançar acesso aberto completo para todo o sistema de comunicação científica em poucos anos. Em outras palavras, o mecanismo de inversão global ou de compensação, por um lado, e soluções baseadas em repositório, por outro lado, apresentadas como a solução única para interromper o sistema atual e substituí-lo por um novo acesso totalmente aberto são provavelmente irreais.

Precisamos de bibliodiversidade aberta

Como conclusão, muitas vezes, a discussão sobre modelos de acesso aberto às vezes é completamente confusa, às vezes simplista demais e geralmente baseada na generalização indevida de situações locais e até mesmo de experiências singulares. Não reflete adequadamente a variedade de parâmetros que influenciam a forma como a pesquisa é praticada e comunicada entre os pares e para as sociedades em geral. Portanto, precisamos desesperadamente de uma discussão mais bem fundamentada, baseada em estudos de caso e, provavelmente, impulsionada pela teoria do ator-rede, pois permite uma modelagem de como as diversas partes interessadas interagem no processo de comunicação científica. Porque não precisamos apenas de acesso aberto, mas sobretudo de modelos de comunicação científica aberta que atendam às necessidades reais das comunidades e sociedades de pesquisa para criar conhecimento e se beneficiar dele, precisamos de um modelo de acesso aberto baseado na bibliodiversidade. É isso que defende o Apelo de Jussieu2.

Notas

1. Freemium é um modelo de negócios que funciona oferecendo serviços básicos gratuitos, enquanto cobra por outros mais avançados ou especiais. A palavra “freemium” é uma junção em inglês das duas palavras que descrevem o modelo de negócios: “free” e “premium”.

2. Jussieu Call for Open science and bibliodiversity [online]. Jussieu Call. 2017 [viewed in 14 August 2018]. Available from: https://jussieucall.org/jussieu-call/#call

Referências

Amsterdam Call for Action on Open Science [online]. Government of the Netherlands. 2016 [viewed in 14 August 2018]. Available from: https://www.government.nl/documents/reports/2016/04/04/amsterdam-call-for-action-on-open-science

Jussieu Call for Open science and bibliodiversity [online]. Jussieu Call. 2017 [viewed in 14 August 2018]. Available from: https://jussieucall.org/jussieu-call/#call

Towards better access to scientific information: Boosting the benefits of public investments in research [online]. European Commission. 2012 [viewed in 14 August 2018]. Available from: http://ec.europa.eu/research/science-society/document_library/pdf_06/era-communication-towards-better-access-to-scientific-information_en.pdf

Links externos

DOAJ list of non-APC journals <https://goo.gl/LgKofL>

Jussieu Call <https://jussieucall.org/>

 

Sobre Pierre Mounier

Pierre Mounier é vice-diretor da OpenEdition, uma infraestrutura abrangente baseada na França para publicação e comunicação em acesso aberto nas ciências humanas e sociais. A OpenEdition oferece diversas plataformas para periódicos, anúncios científicos, blogs acadêmicos e, finalmente, livros, em diferentes idiomas e de diferentes países. Pierre ensina humanidades digitais no EHESS em Paris. Ele publicou vários livros sobre impacto político e social das TIC (Les Maîtres du Réseau, enjeux les politiques d’Internet 2001), publicação digital (L’Edição électronique, com Marin Dacos, 2010) e humanidades digitais (Read/Write Book 2, Une introduction aux humanités numériques, 2012). Como vice-diretor do OpenEdition, o trabalho de Pierre Mounier gira principalmente em torno do desenvolvimento de uma estratégia de internacionalização para a infraestrutura, em particular estabelecendo parcerias com plataformas e instituições na Europa e em outros lugares. Para promover este objetivo, ele participa regularmente de conferências e seminários internacionais para apresentar os programas da OpenEdition e discutir temas relacionados a humanidades digitais e acesso aberto. Pierre Mounier participa nas atividades de Dariah, a infraestrutura europeia de humanidades digitais, e coordena o desenvolvimento da OPERAS, uma infraestrutura europeia dedicada a comunicação científica aberta que reúne 36 parceiros de 12 países, incluindo o SciELO como seu primeiro parceiro internacional.

 

Traduzido do original em inglês por Lilian Nassi-Calò.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

MOUNIER, P. Em direção ao acesso aberto universal? Por que precisamos de bibliodiversidade em vez de uma “bala de prata” [online]. SciELO em Perspectiva, 2018 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2018/08/14/em-direcao-ao-acesso-aberto-universal-por-que-precisamos-de-bibliodiversidade-em-vez-de-uma-bala-de-prata/

 

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