Perspectivas da avaliação por pares aberta: Instigante ponto de interrogação

Imagem: David Trawin.

Por Maria das Graças Targino e Joana Coeli Ribeiro Garcia

Como fenômeno e/ou processo dinâmico, a ciência atravessa etapas não necessariamente excludentes e que variam segundo a ótica dos teóricos. Por exemplo, Le Coadic1 relaciona cinco etapas. A primeira tem como representante máximo o cientista sem amparo institucional, mas com garra e obstinação, dando margem ao estereótipo do “cientista maluco, solitário e excêntrico”: o querido Professor Pardal das histórias em quadrinhos… Num segundo momento, esforços isolados dão origem às primeiras tentativas de um trabalho coletivo, em torno do pesquisador-líder – é o amadorismo científico. A terceira etapa é marcada pela expansão das universidades na condição de academias do saber, configurando a ciência acadêmica, enquanto a chamada ciência organizada dá margem à concentração de pesquisas, favorecendo programas oficiais com vistas ao desenvolvimento da ciência e tecnologia (C&T), mediante a geração de teorias rumo a generalizações para apreensão dos fenômenos. A última etapa – megaciência – refere-se ao reconhecido valor dos pesquisadores envolvidos, em termos nacional e internacional, atuando em laboratórios com equipamentos de última geração e contando com amplos recursos financeiros.

Para David e Spence2, além da primeira fase, marcadamente movida pelo ensaio-e-erro, segue-se um segundo modelo de ciência voltado para a formulação de leis e teorias (generalizações) e, ainda, se dá um terceiro momento, com a intervenção do avanço tecnológico nas práticas científicas. A partir de então, emerge o quarto paradigma. Trata-se da e-science ou enhanced science, expressão atribuída, ainda em 1999, ao britânico John Taylor, Diretor Geral dos Research Councils in the UK (United Kingdom) Office of Science and Technology, para definir a colaboração mais e mais ampla entre diferentes áreas do saber, mediante o investimento em infraestrutura computacional para a ciência, como Hey e Trefethen3 destacam. Eis uma ciência otimizada que reside num “[…] tipo de pesquisa colaborativa e sem fronteiras, possível pela vasta quantidade de dados compartilhados via rede de dados e pela internet”4.

Para a efetivação da e-science, são imprescindíveis três elementos reconhecidamente interindependentes: (1) ciberinfraestrutura, que nomeia a arquitetura tecnológica capaz de favorecer as práticas da e-science; (2) ciência aberta, que atua no delineamento de políticas e mecanismos com o intuito de definir parâmetros com vistas ao acesso amplo aos achados científicos; (3) colaboração, que diz respeito à participação de pesquisadores e da sociedade civil em geral, além do apoio do Estado, visando à construção de novos saberes científicos, e, sobretudo, ao seu compartilhamento.

Os conceitos de e-science e ciência aberta estão, pois, intrinsecamente interligados. Como decorrência, a avaliação dos conhecimentos recém-gerados para sua validação pela comunidade científica, e, a posteriori, pela sociedade em geral, segue, inevitavelmente, a tendência de maior transparência, como proposto, ainda no século XVIII, pelo filósofo, químico e físico irlandês, Robert Boyle, e evidenciado via normas estabelecidas pelo sociólogo norte-americano Robert K. Merton, de início, em 1937, até maior detalhamento, ano 1973. O sistema de avaliação a que são submetidos os originais propostos à publicação na literatura científica, o julgamento de solicitações junto às agências de fomento, a constituição de bancas para exames dos trabalhos de pós-graduação, etc. etc. têm nítida vinculação com as prescrições mertonianas que seguem em voga até os dias de hoje – universalidade; compartilhamento; desapego material e ceticismo sistemático –, subjacentes a qualquer modalidade de arbitragem da ciência, de seus produtores e de seus produtos.

Então, a partir da premissa de que a avaliação consiste em elemento intrínseco ao avanço da C&T, é neste contexto de ciência aberta, de maior acessibilidade aos novos conhecimentos e de maior colaboração entre as áreas, que se registra tendência crescente (mas lenta) de substituir a blind review, ou seja, a avaliação “cega”, seja ela simples (quando o parecerista conhece o autor do manuscrito sujeito à avaliação), seja ela dupla, quando autores e pareceristas não se conhecem, pelo sistema open peer review (OPR, avaliação por pares aberta). Isto porque, a avaliação cega, ao longo do tempo, vem despertando polêmicas e atritos em ritmo continuum. Dentre seus aspectos negativos, Spinak5, cita o quão pouco fidedigna tende a ser, aliado ao fato de que demanda muito tempo; permite distorções que afetam autores e publicações; e não remunera ou credita devidamente os pareceristas por seu trabalho.

Nessa linha de pensamento, mesmo cientes de que, decisivamente, o processo de avaliação é polêmico e difuso, com múltiplas e variadas possibilidades, com métodos ortodoxos ou heterodoxos, de tal forma que nenhum recurso avaliativo é capaz de suprir as expectativas de todos, sobretudo, na comunidade científica, que figura como campo que comporta uma malha intrincada de relações e conflitos, as autoras vêm efetivando estudos para avaliar a viabilidade da adoção da OPR por revistas científicas em ciência da informação (CI). Apesar da maioria de seus periódicos (como das demais áreas) adotar a avaliação cega, inexistem evidências de que é ela mais eficiente do que a avaliação aberta, da mesma forma que a avaliação aberta, cujos modelos emergem desde a década de 80 do século passado, também mantém pontos obscuros a partir da própria concepção e (des)vantagens.

Em relação ao conceito, por conta das variações que o sistema aberto propicia, há uma série de estudos recentes que o contemplam, a exemplo de Ross-Hellauer6, que traz à tona 122 definições e Spinak5, com 22. Tudo isto comprova quão complexa é a ciência aberta e seus desdobramentos, porquanto a concepção do termo – aberto –, no caso da OPR abrange diferentes vertentes que se fundem e/ou se complementam. Exemplificando: abertura dos originais em bases de dados de preprints, à semelhança do próprio F1000Research, Figshare e PeerJPreprints; abertura dos autores; abertura dos referees; abertura aos pares ou ao público em geral para apresentar sugestões/críticas/observações.

E mais, é preciso reforçar, como o faz Spinak5, que a OPR favorece uma série de variações, tais como: (1) identidades abertas – os autores e pareceristas conhecem um ao outro; (2) informes abertos – os itens de revisão são publicados com os originais avaliados; (3) participação aberta – indivíduos da coletividade em geral, independentemente de sua qualificação, contribuem ao longo da revisão, se assim o desejarem; (4) interação aberta – diálogo livre entre autores e árbitros; autores e autores; pareceristas e pareceristas; e assim por diante; (5) disponibilização dos originais antes de qualquer avaliação formal – em servidores de preprints; (6) abertura da versão final para eventuais comentários; (7) plataformas abertas – a revisão não se mantém atrelada à publicação, pois pode advir de diferentes entidades.

Quanto às vantagens da OPR, sua maior aposta vincula-se à percepção da e-science como ciência aberta, e, por conseguinte, em maior escala, graças às colaborações globais, que se estendem à arbitragem, no sentido de que é possível, agora, imprimir maior visibilidade, uso e reuso da produção científica e acadêmica. Por outro lado, dentre as desvantagens, há a desconfiança de que a OPR não possibilite maior rapidez à avaliação como um todo nem tampouco redução de custos.

Diante do exposto até então, no campo da CI, numa primeira etapa, conclusa e devidamente apresentada e publicada no decorrer do XVIII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (Enancib), principal evento da área e sob a responsabilidade da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (Ancib), Garcia e Targino7 analisam a viabilidade da avaliação aberta por editores em ciência da informação, como antes mencionado. Trata-se de iniciativa pioneira no âmbito da CI, e, então, aberta a contribuições e complementações. Ao utilizarem como método de pesquisa o survey, as autoras incorporam, a priori, os editores dos 37 títulos de periódicos da CI com conceitos A e B atribuídos pelo sistema Qualis da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), alcançando a amostra de 15 editores (40,54%). A coleta de informações se deu por meio de questionários enviados por meio do aplicativo Google Docs às unidades amostrais. Dentre os resultados, ressalta-se a constatação de que a maioria (67%) dos editores mostra-se disposta a adotar a open review, enquanto 60% acreditam que ela pode atuar como elemento em prol da qualidade das revistas da área. No entanto, percebeu-se flagrante desencontro quanto à menção de pontos positivos e negativos, o que revela desconhecimento frente ao tema, e, portanto, necessidade de investir na difusão das possibilidades teóricas e metodológicas dessa modalidade de avaliação.

Adotando procedimentos metodológicos similares no mesmo universo dos títulos anteriores, no momento, as autoras estão em fase de discussão dos resultados obtidos junto à amostra de 189 avaliadores, ou seja, 26,6% do total de 709 contatados, haja vista que há a intenção de cobrir os diferentes segmentos da cadeia editorial, com o fim de alcançar uma visão abrangente da possibilidade de adoção do OPR na área. De qualquer forma, é evidente até então que, no mínimo, há intensa curiosidade intelectual em torno da temática, e, por conseguinte, interesse em inovar os processos avaliativos inerentes à produção científica no universo da CI, haja vista que e-science e ciência aberta produzem impactos de natureza tecnológica, sociocultural e jurídica, segundo descrição detalhada de Hey e Trefethen3. Isto corresponde, decerto, a perspectivas “abertas” e cercadas de instigantes pontos de interrogação em torno da avaliação por pares aberta na contemporaneidade.

Notas

1. LE COADIC, Y.F. A ciência da informação. Brasília: Briquet de Lemos Livros, 1996.

2. DAVID, P.A. and SPENCE, M. Towards institutional infrastructures for e-science: the scope of the challenge. Oxford: The University of Oxford, 2003.

3. HEY, T. and TREFETHEN, A. e-Science and its implications. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. 2003, no. 361, pp. 1809-1825.

4. CURTY, R.G. eScience: diferentes vieses, fontes e iniciativas. In: TOMAÉL, M.I. and ALCARÁ, A.R. (org.). Fontes de informação digital. Londrina: UEL, 2016.

5. SPINAK, E. Sobre as vinte e duas definições de revisão por pares aberta… e mais [online]. SciELO em Perspectiva, 2018 [viewed 14 May 2018]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2018/02/28/sobre-as-vinte-e-duas-definicoes-de-revisao-por-pares-aberta-e-mais

6. ROSS-HELLAUER, T. What is open peer review? A systematic review. F1000Research [online]. 2017, vol. 6, no. 588, 2017 [viewed 14 May 2018]. DOI: 10.12688/f1000research.11369.2. Available from: https://f1000research.com/articles/6-588/v2

7. TARGINO, M.G. and GARCIA, J.C.R. Open peer review sob a ótica de editores das revistas brasileiras da ciência da informação. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (Enancib), Marília, 2017.

Referências

CURTY, R.G. eScience: diferentes vieses, fontes e iniciativas. In: TOMAÉL, M.I. and ALCARÁ, A.R. (org.). Fontes de informação digital. Londrina: UEL, 2016.

DAVID, P.A. and SPENCE, M. Towards institutional infrastructures for e-science: the scope of the challenge. Oxford: The University of Oxford, 2003.

HEY, T. and TREFETHEN, A. e-Science and its implications. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. 2003, no. 361, pp. 1809-1825.

LE COADIC, Y.F. A ciência da informação. Brasília: Briquet de Lemos Livros, 1996.

MERTON, R.K. The sociology of science: theoretical and empirical investigations. Chicago: The University of Chicago, 1973.

ROSS-HELLAUER, T. What is open peer review? A systematic review. F1000Research [online]. 2017, vol. 6, no. 588, 2017 [viewed 14 May 2018]. DOI: 10.12688/f1000research.11369.2. Available from: https://f1000research.com/articles/6-588/v2

SPINAK, E. Sobre as vinte e duas definições de revisão por pares aberta… e mais [online]. SciELO em Perspectiva, 2018 [viewed 14 May 2018]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2018/02/28/sobre-as-vinte-e-duas-definicoes-de-revisao-por-pares-aberta-e-mais

TARGINO, M.G. and GARCIA, J.C.R. Open peer review sob a ótica de editores das revistas brasileiras da ciência da informação. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (Enancib), Marília, 2017.

 

Sobre Maria das Graças Targino

Maria das Graças Targino é doutora em ciência da informação (Universidade de Brasília) e pós-doutora em jornalismo pelo Instituto Interuniversitario de Iberoamérica da Universidad de Salamanca com Máster Internacional en Comunicación y Educación pela Universidad Autónoma de Barcelona (também, Espanha). Atualmente, está vinculada ao Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal do Piauí e ao Programa de Pós-Graduação em Ciência de Informação da Universidade Federal do Paraíba (PPGCI).

Sobre Joana Coeli Ribeiro Garcia

Joana Coeli Ribeiro Garcia é doutora em ciência da informação (Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia); e Coordenadora do Grupo de Pesquisa: “Da informação ao conhecimento”, cadastrado junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (ANCIB), período 2009-2010. Atualmente, é professora titular do Departamento de Ciência da Informação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba (PPGCI) e colaboradora em programa de mesmo nome na Universidade Federal de Pernambuco.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

TARGINO, M.G. and GARCIA, J.C.R. Perspectivas da avaliação por pares aberta: Instigante ponto de interrogação [online]. SciELO em Perspectiva, 2018 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2018/05/14/perspectivas-da-avaliacao-por-pares-aberta-instigante-ponto-de-interrogacao/

 

2 Thoughts on “Perspectivas da avaliação por pares aberta: Instigante ponto de interrogação

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