Por Lilian Nassi-Calò
Em princípios da década de 2000 o aumento abusivo dos preços de assinaturas de periódicos científicos, principalmente nas áreas de ciência, tecnologia e medicina, deu origem à o que se tornou conhecido como a crise das publicações seriadas. Este fato catalisou o desenvolvimento do movimento do acesso aberto e o surgimento de iniciativas como SciELO e PubMed Central em 1998 e Public Library of Science em 2000, para citar apenas as pioneiras relevantes.
Decorridos 15 anos, o acesso aberto se consolida como modelo de negócios e política de publicação de resultados de pesquisa financiada com recursos públicos em todo o mundo, apoiada por mandatos de instituições, agências de fomento e tomadores de decisão.
Os preços abusivos de assinaturas, entretanto, permanecem. Gerard Meijer, presidente da Radboud University (Holanda), afirmou em sua apresentação no Workshop on Alternative Open Access Publishing Models (AlterOA), realizado em outubro de 2015 em Bruxelas, Bélgica, que “o modelo de assinaturas é muito sustentável para publishers, mas não para universidades e bibliotecas”. De fato, no mesmo evento, a Liga das Universidades Europeias de Pesquisa (League of European Research Universities, LERU) publicou uma declaração classificando de “financeiramente insustentável” o sistema de publicação acadêmica vigente, informando que nem mesmo a prestigiosa – e abastada – Universidade Harvard pode arcar com o sistema atual de publicação acadêmica, o que dirá as demais. Uma das consequências deletérias deste modelo de negócios é que as bibliotecas estão sendo forçadas deixar de assinar muitos periódicos, penalizando, assim, seus pesquisadores.
Esta preocupação é compartilhada por presidentes e reitores de universidades e bibliotecas na União Europeia, mesmo porque tem consequências mais profundas em todo o processo da comunicação científica do que pode parecer à primeira vista.
O workshop AlterOA reuniu especialistas entre acadêmicos, agências de fomento e gestores de universidades e instituições de pesquisa, para debater o futuro do acesso aberto e seus diferentes modelos e as tendências da publicação científica. O acesso aberto trouxe inegáveis benefícios à comunidade acadêmica e à sociedade, porém ainda são inúmeros os desafios a serem enfrentados em direção à ampla disseminação e compartilhamento do conhecimento:
- Bibliotecas universitárias encarregadas de administrar o pagamento de taxas de publicação de artigos (APCs) enfrentam dificuldades em cumprir com diferentes mandatos de acesso aberto impostos pelas agências de fomento, gerando uma enorme carga administrativa;
- A pressão por publicar se intensifica na medida em que cresce o número de pesquisadores autores e o sistema vigente de comunicação científica associa qualidade a periódicos de alto impacto. Assim, o poder, neste sistema, mudou das mãos das sociedades científicas para as dos publishers, como menciona Jean-Claude Guédon em sua apresentação, conferindo-lhes influência para direcionar os rumos da pesquisa. “Nós, cientistas, precisamos retomar o controle…”, acrescenta Meijer neste sentido.
- A natureza altamente competitiva do sistema de publicação científica coíbe maior grau de colaboração entre pesquisadores e suas instituições. A publicação em acesso aberto, por definição, tende a fomentar a cooperação, pois preconiza que todos podem utilizar os resultados de pesquisa e coloca todos os pesquisadores em igualdade de condições quanto ao acesso à literatura científica, ao mesmo tempo que habilita mais pesquisadores em iguais condições de competir.
- Um dos principais objetivos dos mandatos de acesso aberto para pesquisa financiada com recursos públicos é maximizar seu impacto através da ampla disseminação. Isso altera o balanço de poder dos publishers comerciais para as iniciativas de acesso aberto, como ocorre com a Open Library of Humanities. Mesmo operando com modelos de negócio lucrativos, publishers de acesso aberto não chegam perto em faturamento de gigantes como a Elsevier ou a Springer1.
- A UE está firmemente determinada a fazer com que o acesso aberto se torne a regra da publicação acadêmica, além de coibir cobranças abusivas de assinaturas de periódicos e APCs. Para isso, tomadores de decisão e políticos estão usando de sua autoridade para pressionar principalmente os publishers para chegar a acordos vantajosos para as instituições e financiadores.
O workshop AlterOA reuniu representantes de iniciativas inovadoras, modelos de negócios e soluções de acesso aberto na UE e outras regiões. Alguns são relatados a seguir.
SciELO
O programa SciELO reúne mais de 1000 periódicos revisados por pares de acesso aberto (Via Dourada) de 15 países da América Latina, Portugal, Espanha e África do Sul. A plataforma opera como meta-publisher reduzindo custos, trazendo inovação tecnológica e maximizando a visibilidade, além de agregar um selo de qualidade e prestígio. O programa é liderado pela Fundação de Apoio à Pesquisa de São Paulo, Brasil (FAPESP) e sua operação é descentralizada e financiada por agências de fomento e ministérios dos países onde funciona a Rede SciELO. O programa vem promovendo a busca da auto sustentabilidade por meio da minimização dos custos de serviços de editoração e publicação e convergindo diferentes fontes de custeio.
Open Library of Humanities
A OLH é um publisher de artigos e periódicos de acesso aberto na área de humanidades financiada por bibliotecas de instituições de pesquisa que pretendem reduzir custos destinados à assinatura de periódicos e APCs. Uma taxa paga pelas bibliotecas parceiras europeias, norte-americanas e de outras regiões cobre os custos de publicação e atribui participação na governança da OLH, que recebe financiamento da Fundação norte-americana Andrew W. Mellon. A OLH planeja atrair novos periódicos para sua plataforma, incorporar inovações tecnológicas como altimetrias e ferramentas para comentar e traduzir publicações.
Open Access Network
A Open Access Network busca, por meio de parceria com instituições de pesquisa, sociedades científicas, bibliotecas e publishers universitários, publicar e disseminar resultados de pesquisa, inicialmente na área de ciências sociais e humanidades, em acesso aberto. A rede, que conta atualmente com 40 parceiros nos Estados Unidos, busca arrecadar financiamento de instituições de ensino que permita financiar todas as etapas da comunicação científica, da publicação à preservação.
The BMJ
O British Medical Journal é o principal periódico do Reino Unido na área de medicina publicado em acesso aberto (versão online) pela Associação Médica Britânica. O periódico opera com APCs, e tem como principal fonte de renda a publicidade e assinaturas da versão impressa. O comprometimento do periódico com o acesso aberto é evidenciado pela atitude pioneira em requerer o compartilhamento de dados de pacientes na publicação de ensaios clínicos.
Pay what you want
A Universidade de Munique, na Alemanha, utiliza um sistema de preços de publicação em acesso aberto denominado Pay what you want (PWYW), no qual a decisão sobre o valor da APC a ser paga é dos autores. Um estudo piloto com The Surgery Journal está sendo conduzido por pesquisadores da referida universidade. A análise dos resultados preliminares se mostra promissora, indicando que o sistema pode ser financeiramente viável. Não totalmente inédito no ramo editorial, entretanto, a Taylor & Francis está utilizando um mecanismo similar denominado Cogent OA.
Sponsored Consortium for Open Access Publishing in Particle Physics
O SCOAP3 é uma parceria criada pelo CERN (Organização Europeia para Pesquisa Nuclear que opera o Grande Colisor de Hádrons na fronteira da Suíça e a França) por demanda da comunidade científica que inclui mais de três mil centros de pesquisa, organizações intergovernamentais, bibliotecas e agências de fomento em mais de 47 países. O consórcio, vigente desde janeiro de 2014, possibilitou a operação de periódicos-chave na área de física de partículas em acesso aberto (Via Dourada) sem custo para os autores, por meio de acordos com os principais publishers. A maior parte do financiamento provém do orçamento economizados de bibliotecas com assinatura de periódicos. Cada país contribui de acordo com sua produção científica na área, e até o momento, o consórcio financiou a publicação de cerca de 9 mil artigos em 10 periódicos participantes, pagando APCs muito favoráveis negociadas com os publishers (cerca de € 1.000). Mesmo pesquisadores de instituições não afiliadas ao projeto se beneficiam do acordo, que já atendeu cerca de 20 mil cientistas em todo o mundo.
Transição para acesso aberto
A Biblioteca Digital Max Plank conduziu um estudo recente sobre os custos do acesso aberto que concluiu ser financeiramente viável a transição global de recursos empregados em assinatura de periódicos para custear APCs no acesso aberto. Não se trata de um modelo de negócios especificamente, e sim uma evidência de que o sistema de assinaturas está fazendo que as instituições gastem muito mais do que o fariam caso toda a publicação científica fosse de acesso aberto. Assim, a Biblioteca encoraja instituições a deixar de pagar por assinaturas de periódicos e empregar os recursos em modelos de acesso aberto, porém não considera a resistência dos publishers a uma mudança radical repentina em seus modelos de negócio.
Observações finais
As soluções e alternativas apresentadas no AlterOA ilustram a riqueza de ideias e propostas para maximizar o acesso aberto na publicação científica. Algumas são iniciativas estabelecidas há mais de uma década (p. ex. SciELO), e há outras mais recentes e experimentais (Pay what you want), porém muitas já se mostram economicamente sustentáveis, como o modelo SCOAP3. A adoção de algum dos modelos propostos permitiria reduzir drasticamente a pressão financeira de bibliotecas acadêmicas e instituições de pesquisa, e teria efeitos positivos imediatos no desenvolvimento científico, econômico e social das nações.
Nota
1. A Elsevier faturou €3,6 bilhões e a Springer €3 bilhões em 2014. A PLoS faturou €45,8 milhões no mesmo ano. Fonte: European Commission. Alternative Open Access Publishing Models: Exploring New Territories in Scholarly Communication Report on the workshop held on 12 October 2015 at the European Commission Directorate-General for Communications Networks, Content and Technology by Adam Smith. December 2015.
Referências
COP, N. Recursos gastos globalmente em assinaturas de periódicos podem ser completamente transferidos para um modelo de negócio de acesso aberto para liberar acesso aos periódicos?. SciELO em Perspectiva. [viewed 02 January 2016]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/05/26/recursos-gastos-globalmente-em-assinaturas-de-periodicos-podem-ser-completamente-transferidos-para-um-modelo-de-negocio-de-acesso-aberto-para-liberar-acesso-aos-periodicos/
European Commission. EC Workshop on Alternative Open Access Publishing Models. European Commission. Europe 2020 Initiative. 2015. Available from: http://ec.europa.eu/digital-agenda/en/news/save-date-12-oct-ec-workshop-alternative-open-access-publishing-models
FAUSTO, S. Evolução do Acesso Aberto – breve histórico. SciELO em Perspectiva. [viewed 31 December 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2013/10/21/evolucao-do-acesso-aberto-breve-historico/
NASSI-CALÒ, L. The BMJ exige compartilhamento de dados para publicar ensaios clínicos. SciELO em Perspectiva. [viewed 02 January 2016]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2015/09/23/the-bmj-exige-compartilhamento-de-dados-para-publicar-ensaios-clinicos/
Links externos
Max Plank Digital Library – <http://www.mpdl.mpg.de/en/>
Open Access Network – <http://openaccessnetwork.org/>
Open Library of Humanities – <http://www.openlibhums.org/>
Pay what you want – <http://www.en.uni-muenchen.de/news/spotlight/2015_articles/spann_paywhatyouwant.html>
SciELO – <http://www.scielo.org/>
Sponsoring Consortium for Open Access Publishing in Particle Physics – <http://scoap3.org/>
Taylor and Francis Cogent OA – <http://editorresources.taylorandfrancisgroup.com/introducing-cogent-oa/>
The BMJ – <http://www.bmj.com/>
Sobre Lilian Nassi-Calò
Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.
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Muito boa a explanação da Dra. Lilian. Nós pesquisadores perdemos a paciencia com o onus de pagamento pelas publicaçoes. Está um comercio desenfreado.
Todos os dias recebo convites para submeter artigos em periodicos…e em 100% dos casos há taxas.
Gostaria de sugerir a Scielo o descredenciamento de Periodicos, principalmente os brasileiros que cobram fees / charges seja para submissao seja para a publicaçao de artigos cientificos.
Beira a um absurdo….
Prof. Dr. L.E. Kozick
PUCPR
Obs. Se quiserem podem publicar esta nota.
Realmente fundamental a iniciativa Open Access e louvável a atitude da BMJ. Porém, muitas vezes é o pesquisador quem paga por isso. No caso da BMJ a taxa de publicação é de UK£ 3,000.00 ou mais de R$ 15,000.00, caso o artigo seja aceito. Para mim fica a impressão que o problema apenas foi transferido de mãos.