O modelo de publicação em acesso aberto (AA) vem sendo consolidado como um movimento internacional há mais de duas décadas. As duas principais opções para a publicação de resultados de pesquisa são denominadas a via verde (green road) e a via dourada (golden road). A primeira inclui o auto-arquivamento de manuscritos em repositórios institucionais ou temáticos, e a segunda inclui periódicos híbridos e exclusivamente de acesso aberto.
Desde as Declarações de Budapest, Berlim e Bethesda em 2002-2003, houve um aumento imediato no número de periódicos em acesso aberto, tendendo nos dias de hoje à estabilização. Atualmente, o Directory of Open Access Journals (DOAJ) registra mais de 9.700 periódicos em 133 países.
A comunidade científica e a sociedade, principalmente em países em desenvolvimento, se beneficiam deste movimento, enquanto que os autores buscam visibilidade e impacto ao selecionar um periódico para publicar seus resultados de pesquisa. Ambos os objetivos podem ser contemplados por meio da via verde. Segundo Houghton e Swan, entretanto, os benefícios da via dourada ultrapassam os da via verde, porém os autores consideram que na atual fase de transição, repositórios seguem sendo mais viáveis econômica e estrategicamente. Ademais, a última recomendação da Budapest Open Access Initiative (BOAI, 2012), ressalta a importância dos repositórios na disponibilização de resultados de pesquisa de acesso aberto: “Cada instituição de ensino superior deve ter um repositório AA, participar de um consórcio com repositório AA consorciado, ou organizar um serviço terceirizado de repositório AA”.
Os artigos citados no parágrafo acima fazem parte de uma publicação recente de autoria de Rosangela Rodrigues e Ernest Abadal¹, que traça um panorama do modelo de publicação do acesso aberto no Brasil e na Espanha analisando os periódicos destes países indexados nas bases Web of Science (WoS) e Scopus segundo os aspectos do formato da publicação – online ou impresso – , o tipo de acesso – aberto ou por assinatura – e a plataforma tecnológica utilizada.
Muitos países em desenvolvimento não possuem uma estrutura de publishers comerciais, e a maioria dos periódicos de qualidade não tem fins lucrativos, sendo operados com recursos públicos por sociedades científicas e intuições de pesquisa. Por outro lado, países do Sul da Europa têm poucos publishers comerciais e menos recursos quando comparado a países líderes na região. Apesar disso, ambos desenvolveram modelos bem sucedidos de acesso aberto. Este post traça um perfil destes programas e as razões do seu sucesso.
O modelo de acesso aberto considera o conhecimento científico como um bem público global e uma forma justa de prestar contas à sociedade sobre a pesquisa financiada com recursos públicos. Para países em desenvolvimento este modelo é especialmente importante, por promover a equidade e aumentar a capacidade de pesquisadores em avançar nas pesquisas. Ademais, no modelo por assinatura, além de pagar pela pesquisa, as universidades devem pagar novamente pelo acesso aos periódicos onde esta pesquisa é publicada. Neste sentido, a “Declaração de Salvador sobre o Acesso Aberto: a perspectiva dos países em desenvolvimento”, assinada em 2005 pelos participantes do International Seminar on Open Access, realizado durante o ICML9 e CRICS7, constitui um marco no movimento global do AA.
Em suas respectivas regiões, Brasil e Espanha possuem o maior potencial no campo da publicação acadêmica e ambos têm perfil dominante em produção científica em suas áreas geográficas.
No Brasil o número de periódicos indexados em bases de dados internacionais como WoS e Scopus era incipiente até 2005. A partir de então, impulsionado pelo programa SciELO, os periódicos foram adquirindo visibilidade e maior qualidade, perpetuando um círculo virtuoso até os dias de hoje. A vasta maioria (90%) dos periódicos brasileiros na WoS e Scopus também fazem parte da coleção SciELO e é editada em AA por sociedades científicas ou instituições de pesquisa e ensino, não tem fins lucrativos e seus editores são concomitantemente pesquisadores respeitados e produtivos em suas áreas de atuação. O uso da plataforma Open Journal System (OJS) provida pelo Instituto Brasileiro de Informação Científica e Tecnológica (IBICT) também contribui para apoiar editores na gestão e operação de periódicos por meio de recursos online e atividades de capacitação. Dez por cento dos periódicos brasileiros operam com taxas de publicação usadas para cobrir os custos de editoração que variam de US$ 60 a US$ 500 por artigo.
As publicações da Espanha têm sido estudadas por muitos autores. No mais recente artigo, Rodríguez-Yunta e Giménez-Toledo (2013) ressaltaram a baixa representatividade de periódicos de país na área de humanidades e ciências sociais, os quais têm baixo impacto e representatividade, possivelmente por gestão inadequada. Outro estudo analisou 30 artigos presentes no JCR, com foco no tipo de publisher, presença internacional no corpo editorial, impacto e perfis de citação. Na época, a pesquisa mostrou predomínio de 60% na área da saúde, com 40% deles geridos por publishers comerciais. Uma pesquisa sobre periódicos administrados por universidades na Espanha (25% do total) mostrou que são necessárias inúmeras iniciativas para melhorar a qualidade, visibilidade e impacto dos mesmos.
O objetivo do estudo de Rodrigues e Abadal é obter uma visão geral dos periódicos científicos indexados na WoS e Scopus em 2011 de ambos os países, e analisar os modelos de distribuição adotados.
Aspectos gerais
Periódicos do Brasil e Espanha foram sendo indexados na WoS e Scopus principalmente a partir da última década. Estes periódicos, entretanto, não são novos, tendo sido criados em sua maioria (76% no caso do Brasil e 71% no caso da Espanha) antes de 1995, quando a publicação online não era comum, o que leva a assumir que estes periódicos tenham sucessivamente migrado para plataformas online. No Brasil predominam periódicos de universidades e sociedades científicas (87%), ao passo que na Espanha a distribuição é mais equitativa, com 26% administrados por associações científicas, 32% por universidades e instituições de pesquisa, e 28% por publishers comerciais e parcerias entre estes e associações.
Os temas mais importantes em pesquisa no Brasil são ciências da saúde e ciências agrárias, com mais de 60% dos títulos de periódicos nestas áreas, seguido de ciências humanas e sociais (16%). Na Espanha, a área da saúde responde por 40% dos títulos, seguido por ciências sociais e humanidades (28%). Portanto, as áreas da saúde e ciências sociais são importantes em ambos os países, porém as demais áreas têm participações distintas.
Modelos de distribuição
Quanto ao formato de distribuição de periódicos, em ambos os países a presença da versão somente impressa é muito baixa, especialmente no Brasil, que adotou plenamente o modelo online. Na Espanha, entretanto, ela é significativamente mais alta que no Brasil (7,3% e 0,8%, respectivamente), diferença que pode ser atribuída aos periódicos em ciências sociais, que publicam preferencialmente versões impressas.
A fração de títulos em acesso aberto no Brasil e na Espanha é bastante diferente, atingindo a notável marca de 97% no Brasil, comparado a 55% na Espanha. A cobrança de taxa de publicação é bastante baixa no Brasil (10%) e praticamente inexistente na Espanha. Em ambos os países os periódicos recebem financiamento governamental ou das instituições às quais estão afiliados. Outros estudos²׳³, entretanto, obtiveram diferentes valores para o percentual de acesso aberto nos dois países, mas isso se deve ao fato de ter sido utilizada como base da consulta o DOAJ ao invés da informação obtida nos portais de cada periódico, como no presente estudo. Estes autores constataram que o DOAJ deixou de incluir o significativo número de 99 periódicos da Espanha e 29 do Brasil, representando, respectivamente, 60% e 12% do total.
A publicação em acesso aberto requer uma estrutura tecnológica capaz de suportar o armazenamento dos conteúdos, ferramentas de busca e outros serviços, e o acesso por parte de um grande número de usuários ao mesmo tempo. Isso faz com que muitos periódicos utilizem mais de uma plataforma simultaneamente. Este overlap de plataformas é mais pronunciado no Brasil, com 1,8 plataformas por periódico, do que na Espanha, com 1,1 plataformas por artigo.
No Brasil, a plataforma SciELO atua como um meta-publisher da grande maioria (78%) dos periódicos brasileiros considerados neste estudo. Os demais periódicos utilizam plataformas próprias ou a do OJS. Na Espanha não há um meta-publisher principal, e os periódicos utilizam plataformas próprias (50%), a do OJS, ou a de publishers comerciais.
A coleção SciELO Espanha foi iniciada em 2001, por meio de um projeto-piloto. A partir deste início, o número de periódicos indexados foi aumentando até estabilizar ao redor de 40 periódicos, 27 dos quais foram considerados neste estudo.
A questão que se coloca diante dos dados deste estudo é como a quase totalidade dos periódicos de alta qualidade e impacto do Brasil e mais da metade dos da Espanha publicam seus conteúdos em acesso aberto?
No caso do Brasil, a explicação reside em seis stakeholders principais que tomaram um conjunto de medidas econômicas, políticas e tecnológicas, além de treinamento em editoração para promover e fortalecer os periódicos:
SciELO – o programa SciELO teve início em 1998 com 10 periódicos do Brasil. Quinze anos depois presente em 16 países, 11 destes com coleções certificadas, e mais de mil títulos (julho de 2013). O SciELO opera com padrões internacionais de qualidade e contagem de métricas de impacto científico; como indexador, com critérios estritos de inclusão e permanência; e como plataforma tecnológica para a publicação e acesso às coleções nacionais e temáticas de periódicos.
CNPq – O órgão governamental vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia dispõe de um orçamento anual de US$ 3 milhões divididos entre aproximadamente 200 dos melhores periódicos.
Universidades – As instituições são responsáveis pela publicação de 47% dos periódicos considerados neste estudo, provendo recursos financeiros e humanos para a gestão e editoração, além de espaço físico em suas instalações e infraestrutura tecnológica. A quase totalidade dos editores no Brasil é formada por docentes e pesquisadores renomados e produtivos em suas áreas de atuação.
Qualis CAPES– O Qualis é um sistema de classificação de periódicos em cada área do conhecimento desenvolvido e coordenado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A classificação dos cursos de pós-graduação tem como um dos principais componentes a avaliação dos periódicos onde são publicados os resultados das pesquisas. Por sua vez, a posição dos periódicos no ranking determina seu prestígio e infuencia a quantidade e qualidade dos trabalhos submetidos.
IBICT – O Instituto oferece treinamento em editoração e apoio à publicação em AA, e à plataforma OJS.
Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC) – A associação oferece cursos e promove eventos em editoração científica para editores e publishers.
Na Espanha, as ações em prol do AA concentraram-se em desenvolvimento tecnológico, treinamento e recomendação, porém sem financiamento direto destinado à publicação de periódicos. As iniciativas mais relevantes estão relacionadas a seguir:
Marco legislativo e regulatório – As leis espanholas, assim como a regulamentação das universidades são favoráveis ao AA, por exemplo, a Lei em Ciência, Tecnologia e Inovação de 2011, que inclui um artigo sobre AA. A exemplo de instituições em países Europeus e os Estados Unidos, as universidades criaram mandatos para auto-arquivamento em repositórios institucionais. Estas medidas levaram à conscientização sobre o AA por parte de autores e publishers.
Fundação Espanhola para Ciência e Tecnologia (FECYT) – Agencia governamental que apoia a publicação científica por meio de programas que incluem capacitação e prêmios para qualidade em publicações científicas.
Universidades e Institutos de Pesquisa – Estas instituições são responsáveis pela publicação de 39% dos periódicos da Espanha considerados nesta publicação, provendo financiamento e suporte tecnológico, de forma a incrementar a qualidade e facilitar a publicação em AA.
Índices de avaliação de periódicos – Com a finalidade de aumentar a representatividade de periódicos que não estão presentes na WoS ou Scopus, foram criados índices alternativos de impacto científico na Espanha.
Brasil e Espanha têm diferenças significativas em vários aspectos, e não obstante, possuem um número comparável de periódicos indexados em bases de dados internacionais de prestígio, e ambos operam o modelo de AA praticamente na ausência de taxas de publicação para autores. Neste aspecto, o crescimento do Brasil é notável, tendo em vista sua recente tradição em pesquisa, baixos recursos financeiros e profissionais qualificados. Os dois países se assemelham na idade dos periódicos e nas principais áreas de atuação em pesquisa, ciências da saúde em ambos e ciências agrárias no Brasil.
Os modelos de distribuição, entretanto, são bastante distintos. No Brasil predomina o modelo em acesso aberto, com 97% dos periódicos publicados por instituições de ensino e pesquisa e sociedades científicas. Neste cenário, o programa SciELO tem um papel primordial, pois em sua plataforma estão incluídos 78% dos periódicos considerados neste estudo. Ao atuar como meta-publisher, o SciELO aumenta a visibilidade e disseminação dos periódicos, e ainda fornece dados bibliométricos.
Na Espanha o quadro é menos homogêneo, apesar de 55% dos periódicos terem adotado o modelo AA, na falta de um agregador comum como o SciELO, existe tendência à dispersão. O suporte por parte do FECYT, por exemplo, não se compara ao financiamento e apoio tecnológico do governo brasileiro. A despeito disso, o país alcançou uma presença significativa nos índices internacionais, e grande visibilidade da ciência nacional.
Os dois modelos bem sucedidos de AA identificados no Brasil e na Espanha não fazem uso de taxas de publicação, devido ao suporte financeiro, tecnológico e político proporcionado por governos, instituições e sociedades científicas. “A extensão do AA depende do nível e da sustentabilidade deste suporte” afirmam Rodrigues e Abadal, em conclusão. Os autores ainda sustentam que estudos comparativos desta natureza são úteis para explorar a diversidade de cenários onde o modelo de AA vem sendo bem sucedido, e também para identificar pontos de referência para o planejamento de políticas em favor do AA.
Notas
¹ RODRIGUES, R.S., and ABADAL, E. Scientific Journals in Brazil and Spain: Alternative Publishing Models. J. Ass. Inform. Science and Technology. 2014. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/asi.23115/abstract;jsessionid= EB2E3AE739C4C5A74D455B37349A1F28.f04t04?deniedAccessCustomisedMessage=&userIsAuthenticated=false.
² ABADAL, E., et al. Open access in Spain. In ANGLADA, L., and ABADAL, E., eds. Open access in Southern European countries. Madrid: FECYT. 2010, pp. 101-115. Available from: http://oaseminar.fecyt.es/Resources/Documentos/OAreport/OASouthEurope_07_Spain.pdf.
³ MIGUEL, S., MOYA-ANEGÓN, F., and CHINCHILLA-RODRIGUEZ, Z. Open access and Scopus: A new approach to scientific visibility from the standpoint of access. Journal of the American Society for Information Science and Technology. 2011, Vol. 62, nº. 6, pp. 1130–1145. Available from: http://eprints.rclis.org/16100/.
Referências
HOUGHTON, J., and SWAN, A. Planting the green seeds for a golden harvest: Comments and clarifications on “Going for Gold.” D-lib magazine. 2013, vol. 19, nº 1/2. Available from: http://www.dlib.org/dlib/january13/houghton/01houghton.html.
Ten years on from the Budapest Open Access Initiative: Setting the default to open. Budapest Open Access Initiative. 2012. Available from: http://www.opensocietyfoundations.org/openaccess/boai-10-recommendations.
PACKER, A.L. Os periódicos brasileiros e a comunicação da pesquisa nacional. Rev. USP. 2011, nº. 89. Available from: http://rusp.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-99892011000200004&lng=pt&nrm=isso.
Declaração de Salvador sobre o acesso aberto: a perspectiva dos países em desenvolvimento. 9th International Congress on Medical Librarianship; 7 Congresso Regional de Informação em Ciências da Saúde; International Seminar on Open Access; 20-23 setembro 2005; Salvador, BA. Salvador; 23 set. 2005. [viewed 18 April 2011] Available from:
http://www.icml9.org/public/documents/pdf/pt/Dcl-Salvador-AcessoAberto-pt.pdf
Quanto custa publicar em acesso aberto? SciELO em Perspectiva. [viewed 10 April 2014]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2013/09/18/quanto-custa-publicar-em-acesso-aberto/
Links externos
Web of Science – http://wokinfo.com/
Scopus – http://www.scopus.com/
Sobre Lilian Nassi-Calò
Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.
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