Por Adeilton Brandão, editor-chefe das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz)
Na prática moderna da ciência o artigo científico é um elemento crucial, e sem este não podemos pensar em “prática científica”. Desde a fundação do primeiro periódico científico, o Journal des sçavans em 1665, cientistas de todos os ramos do conhecimento têm divulgado, publicamente, seus resultados de pesquisa através da elaboração e publicação de “artigos científicos”. Mas a ciência acadêmica contemporânea, com seu sistema quantitativo de avaliação de desempenho para cientistas individuais, levou o artigo científico a um outro patamar: mais do que um meio de divulgação de resultados de pesquisas, foi transformado no “objetivo principal” a ser alcançado pelo cientista individual. Sob essa métrica de desempenho acadêmico, quanto mais artigos (papers) um cientista publicar, melhor, independentemente de seu conteúdo científico.
No artigo The big idea: should we get rid of the scientific paper?,1 publicado pelo jornal britânico The Guardian, Stuart Ritchie propõe uma ação radical: os cientistas devem abandonar o formato atual do artigo científico, que é estático e sem interatividade. Apesar de atualmente serem publicados em meio eletrônico, os artigos científicos ainda são muito semelhantes à versão impressa que dominou o cenário editorial científico por mais de três séculos. Em termos práticos, o artigo científico atual é apenas uma versão eletrônica do “papel físico impresso em preto e branco” em formato PDF (portable document format). Esse formato não é amigável para leitura na tela de computadores, tablets e celulares, que são dinâmicos e oferecem, ao leitor, inúmeras alternativas de interação com as informações. Ler um artigo científico hoje em dia deve ser mais do que obter informações passivas sobre um determinado assunto: deve ser uma oportunidade de pensar, verificar, revisar e reproduzir os dados e análises apresentados no artigo.
Todavia, tanto os padrões da indústria editorial científica como as regras do meio acadêmico, se opõem a qualquer mudança nesse sistema estático, passivo, e sobretudo, não transparente de divulgação científica. O artigo do jornal The Guardian aponta algumas alternativas para esta “embalagem” em PDF de artigos científicos, entre as quais, o uso de “notebooks” que combinam imagens, dados, código, métodos e análises em um único “artigo” interativo e dinâmico, o qual pode ser lido, revisado, reproduzido, editado e compartilhado a qualquer momento. Este formato é conhecido como “artigo vivo”.
Mas o problema não reside apenas no “artigo científico estático”. Existem os periódicos e as regras ditadas (principalmente) pelos interesses financeiros dos publishers comerciais. O sistema predominante de comunicação de resultados científicos não foi desenvolvido pelos cientistas, que não podem decidir livremente qual é o melhor “veículo” ou formato para divulgar seu trabalho de pesquisa. De fato, os publicadores dos periódicos científicos decidem e controlam qual formato é aceito ou não. Na prática, um cientista hoje deve, estritamente, seguir regras determinadas pelos editores de periódicos, que também dependem do consenso e dos padrões definidos por toda a indústria editorial.
Por esse raciocínio, o problema não é o artigo em si, mas sim o veículo que difundiu a mensagem do cientista: o periódico científico e suas regras! Não é possível “livrar-se do artigo científico” sem reformar o conceito e a prática do “periódico científico”!
Nota
1. RITCHIE, S. The big idea: should we get rid of the scientific paper? [online]. The Guardian. April 11, 2022 [viewed 14 April 2022]. Available from: https://www.theguardian.com/books/2022/apr/11/the-big-idea-should-we-get-rid-of-the-scientific-paper
Referência
RITCHIE, S. The big idea: should we get rid of the scientific paper? [online]. The Guardian. April 11, 2022 [viewed 14 April 2022]. Available from: https://www.theguardian.com/books/2022/apr/11/the-big-idea-should-we-get-rid-of-the-scientific-paper
Sobre Adeilton Alves Brandão
Adeilton Brandão tem doutorado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e certificado de educação executiva pela Sauder School of Business, British Columbia University, Vancouver – Canadá. Sua pesquisa enfoca os segmentos não traduzidos de mRNA de protozoários parasitas. Ele é pesquisador do Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) e editor-chefe da Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, um periódico de micro-organismos e seus vetores que causam infecções em humanos.
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