Ética editorial – os intelectuais também tem que fazer referências bibliográficas

bauman

No início deste mês de abril, o jornal britânico The Guardian publicou um post na qual Zigmunt Bauman¹, o eminente sociólogo da “modernidade líquida”, rejeita acusações de plágio com o argumento de que os acadêmicos de alto prestigio não estão obrigados a seguir as regras de referência que indicam os manuais.

Seu acusador, Peter Walsh, estudante de doutorado da Universidade de Cambridge, assinala que várias passagens que Bauman usa em seu último livro, Does the Richness of the Few Benefit Us All?² são copias quase exatas de sites em geral e da Wikipedia, em particular. Se bem que Bauman menciona estas fontes ao longo do texto, não assinala estas passagens como material copiado (cursivas, entre aspas, recuo, etc.), de acordo com as indicações das normas das universidades sobre plágio, inclusive reproduzindo os erros das fontes plagiadas.

O surpreendente a ser destacado nesta situação, é que Bauman, com mais de 30 livros publicados durante quase 60 anos, em vez de negar o plágio ou dar alguma desculpa, optou por atacar as regras e os ideais que regem a atribuição na investigação. É certo que Bauman diz que nunca deixou de reconhecer a autoria de ideias ou conceitos que logo desenvolveu ou que inspirou, o certo é que também afirmou que as regras de citação são “tecnicismos” que, ao final, não são importantes. O publisher Polity, distribuidor de seu livro, declinou opinar sobre se havia verificado o livro quanto à plágio.

Entre os muitos comentários e posts publicados nestes dias, destacaremos dois deles. O primeiro por Jonathan Bailey no blog de iThenticate.

Bailey afirma que Bauman se equivoca quando pensa que fazer referências às fontes é um mero “tecnicismo”. O problema não é que Bauman não esteja seguindo os estilos exatos da citação, porém que não pode citar fontes primárias copiando quase textualmente das fontes secundarias. Omitir a atribuição não é somente violar una norma técnica, é quebrar a cadeia de atribuição, pois a ciência é uma construção onde cada pesquisador se apoia sobre os ombros dos que o precederam. Citando Bailey (2014):

“Esta cadeia de atribuição é crucial não apenas para manter a autoria e dar crédito pelo trabalho de outros, mas também para assegurar-se de que outros que o leiam possam verificar que o trabalho é correto… Se bem que as regras de citação possam parecer arcaicas, especialmente na era da Internet, a comunidade científica deve ser cautelosa ao alterar as normas, já que são fundamentais para a maneira com que se obtém o novo conhecimento”. (tradução livre)

O segundo post que queremos destacar, e que é especialmente agradável de ler, foi escrito por Alberto Bellan no blog The IPKat. Este blog, publicado desde junho de 2003, se dedica aos temas de copyright, patentes, tecnologia da informação e assuntos de privacidade e confidencialidade da perspectiva Britânica e Europeia.

A nota de IPKat com o irónico título de: Zygmunt Bauman – liquid copyright or solid plagiarism? apresenta uma série de fac-símiles lado a lado mostrando efetivamente as fontes das partes copiadas no livro de Bauman. Ademais, faz referência aos manuais da universidade de Harvard, e da Universidade de Leeds, onde Bauman é professor, indicando que a cópia de pedaços de várias fontes, onde se mudam algumas palavras aqui e ali, ou parafraseando em forma adequada, o resultado é considerado “plágio em mosaico”, e esta é exatamente a transgressão que Bauman faz muitas vezes em seu livro.

Não é nenhum pedantismo (como o denominou Bauman) exigir que os autores indiquem quando estão usando palavras de outros autores. Sempre deve ser feita a atribuição ao autor copiado, inclusive se a fonte é a Wikipedia, pois tal obra requer ser citada formalmente, de acordo com suas próprias instruções para Creative Commons³.

É muito interessante que nesta sociedade pós-moderna, onde as hierarquias fixas, as antigas ordens e as regras clássicas do mundo académico da modernidade sólida parecem começar a se derreter a nossa volta, mediante a expansão líquida do direito de autor como o entende Zygmunt Bauman.

Esta nota está aberta a opiniões, e convidamos os leitores a deixar seus comentários.

Notas

¹ Zygmunt Bauman é um sociólogo, filósofo e ensaísta polonês nascido em 1925, conhecido por cunhar o termo e desenvolver os conceitos de “modernidade sólida – modernidade líquida, e a construção da identidade pessoal.

Apesar de Bauman ser considerado um pensador ‘pós-moderno’, não lhe cabe o termo de pós-modernista, já que utiliza os conceitos de modernidade sólida e líquida para caracterizar o que considera as duas faces da mesma moeda.

Bauman defende que na modernidade líquida as identidades são semelhantes a uma crosta vulcânica que endurece, volta a se fundir e muda constantemente de forma. A modernidade líquida se refere ao processo pelo qual o individuo deve passar, para poder integrar-se a uma sociedade cada vez mais global, porém sem identidade fixa, e sim maleável e volúvel. A identidade deve ser inventada, criada, se devem moldar máscaras de sobrevivência.

Se antes no século XVIII a sociedade se caracterizava pelo sentido de pertencimento do individuo muito marcado entre os distintos estratos sociais, agora com o auge das redes sociais e as TICs, as identidades globais, volúveis, permeáveis e propriamente frágeis, oscilam de acordo com a tendência que marca o consumismo.

http://es.wikipedia.org/wiki/Zygmunt_Bauman

² Bauman, Z. Does the Richness of the Few Benefit Us All? Zygmunt Bauman. Polity. 2013. 100 p. Available from: http://www.wiley.com/WileyCDA/WileyTitle/productCd-074567108X.html

³ Wikipedia:Texto de la Licencia Creative Commons Atribución-CompartirIgual 3.0 Unported http://es.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:Texto_de_la_Licencia_Creative_Commons_Atribuci%C3%B3n-CompartirIgual_3.0_Unported

Referências

JUMP, P. Zygmunt Bauman rebuffs plagiarism accusation. The Guardian. 3 April 2013. Available from: http://www.timeshighereducation.co.uk/news/zygmunt-bauman-rebuffs-plagiarism-accusation/2012405.article?utm_campaign=blog-alerts&utm_source=hs_email&utm_medium=email&utm_content=12444770&_hsenc=p2ANqtz–eLVRTV-oi2lSrXnd6Hp6uosuEiAgenw72Pi8_prhaWa_ 8Z52ZTVExxCxmPS3pyo5sCzg1Lggu2rj84WnpzLSr5T8vbA&_hsmi=12444770

BAILEY, J. Why citation is more than a technicality. iThenticate. 8 April 2014. Available from: http://www.ithenticate.com/plagiarism-detection-blog/why-citation-is-more-than-a-technicality?utm_campaign=blog-alerts&utm_source=hs_email&utm_medium=email&utm_content=12444770&_hsenc=p2ANqtz–DNXc9R_g0ltfixryLZO1DdsaKTlXQhoWOIxk5pNxxgNbGh5F6xxW6LiIS35PpNQNac-NoQw_xMQ9nEn2HyMRM2C8Lcw&_hsmi=12444770#.U0_M_GwU-00b

Zygmunt Bauman — liquid copyright or solid plagiarism? The IPKat. 11 April 2014. Available from: http://ipkitten.blogspot.com/2014/04/zygmunt-bauman-liquid-copyright-or.html

 

spinakSobre Ernesto Spinak

Colaborador do SciELO, engenheiro de Sistemas e licenciado en Biblioteconomia, com diploma de Estudos Avançados pela Universitat Oberta de Catalunya e Mestre em “Sociedad de la Información” pela  Universidad Oberta de Catalunya, Barcelona – Espanha. Atualmente tem uma empresa de consultoria que atende a 14 instituições do governo e universidades do Uruguai com projetos de informação.

 

[Revisado em 08 Maio 2014]

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

SPINAK, E. Ética editorial – os intelectuais também tem que fazer referências bibliográficas [online]. SciELO em Perspectiva, 2014 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/04/28/etica-editorial-os-intelectuais-tambem-tem-que-fazer-referencias-bibliograficas/

 

8 Thoughts on “Ética editorial – os intelectuais também tem que fazer referências bibliográficas

  1. o interessante a notar, também, é como a produção de bauman disparou por volta de 2000. duvido que seja mera coincidência ou um surto de produtividade a partir de suas reflexões próprias.

  2. Joyce Silva on May 29, 2014 at 16:19 said:

    Talvez Bauman como muitos de nós já esteja saturado do burocratismo e da neurose galopante que tem massacrado as ideias no mundo acadêmico. Estamos todos cada vez mais querendo nos proteger juridicamente ao invés de nos preocuparmos em fazer circular e discutir as ideias tenham elas referencias bibliográficas ou não.Somos reféns de “comitês de éticas” que muitas vezes estão mais preocupados em sua perpetuação institucional e burocrática do que com o risco real que uma pesquisa pode trazer aos seus participantes.

  3. Phil Badiz on September 2, 2015 at 11:28 said:

    The idea that “the rules don’t apply” if you are a famous ‘someone’ is particularly disturbing – it seems that horrid day when celebrities and intellectuals are in agreement has arrived, much to the detriment of academia.
    A idéia de que “as regras não se aplicam” se você é um ‘alguém’ famoso é particularmente perturbador – parece que o dia horrível quando as celebridades e intelectuais estão de acordo chegou, muito em detrimento da academia.

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