Por Alexander W.A. Kellner, Laboratório de Sistemática e Tafonomia de Vertebrados Fósseis, Departamento de Geologia e Paleontologia, Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
O mundo atualmente ainda está sob o impacto da pandemia, com efeitos globais negativos que colapsaram o sistema de saúde em vários estados (por exemplo, COVID-19 pandemic outbreak: the Brazilian reality from the first case to the collapse of health services1). Embora em algumas regiões a pandemia pareça estar começando a ficar sob controle, este não é o caso na maioria dos países, gerando incerteza sobre os cenários futuros (por exemplo, Scenarios for the Spread of COVID-19 in Manaus, Northern Brazil2).
Um dos efeitos colaterais da Covid-19 foi o aumento na submissão de artigos científicos, levando a preocupações sobre a qualidade da pesquisa publicada (por ex., Editorial Evaluation and Peer Review During a Pandemic – How Journals Maintain Standards3). Embora a discussão deste assunto seja legítima, há outras questões a serem abordadas, como o número crescente de autores em artigos (por ex., Factors Influencing the Extent of Co-Authorship in IS Research: An Empirical Investigation4), um problema potencial que também deveria estar no radar dos Editores.
Discutir autoria é talvez um dos tópicos mais complexos da ciência e existe literatura sobre isso (por ex., Salami Slicing, Shotgunning, and Ethics of Authorship5), ocasionalmente resultando em recomendações bastante diretas (por ex., Ethics in the authorship and publishing of scientific articles6). McNutt, et al. (2018)7 delineou algumas sugestões quanto às políticas de autoria de periódicos científicos, apontando a existência de pelo menos quatro práticas prejudiciais. A mais comum delas é chamada de autoria convidada (às vezes também chamada de autoria honorífica ou presenteada), e ocorre quando alguém de alto status, seja na área ou na instituição, é convidado a assinar o artigo sem ter realmente prestado qualquer contribuição. Embora nenhum dano real seja pretendido por tais ações, parece haver pouca dúvida de que estas situações são repreensíveis para aqueles que oferecem e aqueles que as aceitam.
A autoria fantasma, em que as pessoas que contribuíram efetivamente para o artigo, mas não o assinam para ocultar algum conflito de interesses, são particularmente complexas, pois são casos difíceis de comprovar, podendo até ser causados pela manipulação dos autores. Atenção especial deve ser dada aos pareceristas, que podem tentar conduzir o estudo em diferentes direções que nada têm a ver com o conteúdo científico do artigo (às vezes até periférico à pesquisa), com o objetivo de reforçar suas próprias convicções (e publicações) ou depreciar o trabalho de outros autores, enquanto se escondem no anonimato. Em artigos posteriores, estes mesmos pareceristas podem até citar o trabalho que revisaram como evidência contra aqueles com ideias concorrentes.
As duas categorias restantes de autoria problemática listadas por McNutt et al. (2018)7 são autorias órfãs, quando os autores são apenas “deixados de fora” do artigo por motivos injustos, e autoria forjada, quando são acrescentados autores que não fizeram parte do estudo original, sem o seu conhecimento. Neste último caso, tal ação poderia até ser tomada para aumentar as chances de publicação do artigo. Em ambos os casos, demonstrar estas situações deveria ser, na maioria das vezes, muito fácil de detectar, deixando aos editores a possibilidade de uma ampla gama de medidas, das quais a retratação do artigo tende a ser a melhor conduta.
Há, no entanto, outra categoria de autoria que parece mais problemática e parece estar aumentando: a autoria de conveniência, brevemente introduzida por Kellner (2018).8 A autoria de conveniência pode ser definida como a ação recíproca que ocorre entre pesquisadores quando um convida o outro a aparecer em seu artigo sem contribuição efetiva, com o objetivo de inflar o número de publicações de cada um. Este procedimento difere da autoria honorífica porque esta inclusão não está ligada a nenhuma reverência ao autor incluído, nem a dar maior importância ao estudo. Também não está vinculado a autoria forjada, pois é consensual entre os que o praticam e não há tentativa de ampliar a relevância do estudo, visto que normalmente há uma equivalência na área entre o autor incluído e aquele que fez a inclusão.
Percebe-se que é cada vez maior o número de jovens cientistas publicando artigos com colegas de diferentes laboratórios (às vezes da mesma instituição) sobre temas que não estão diretamente relacionados ao que foram efetivamente formados para fazer. Embora claramente algumas (talvez a maioria) destas colaborações sejam legítimas e até necessárias, principalmente em pesquisas multidisciplinares onde o conhecimento de diferentes áreas é fundamental para o estudo, existe também a possibilidade de pesquisadores retribuírem autoria sem um propósito claro que não seja o de aumentar a produção científica individual. E isso pode começar muito cedo na carreira.
Existem laboratórios com políticas de publicação onde todos os membros (às vezes também incluindo todos os técnicos) participam de todos (ou da maioria) dos trabalhos publicados por aquele laboratório. Isso resulta em alunos de pós-graduação “colaborando” uns com os outros em atividades de pesquisa às vezes não relacionadas ao tema que estão desenvolvendo em suas dissertações ou teses. Existem outros laboratórios onde as políticas de publicação apenas recompensam a autoria daqueles que realmente contribuíram para o estudo. O chefe do laboratório incentiva o trabalho em equipe entre os alunos, cada um desenvolvendo sua própria pesquisa, que é combinada e incluída no manuscrito final. Mas aqui está o problema. É muito comum que os alunos façam estágios em laboratórios quando ainda estão cursando a graduação. Com o prosseguimento da carreira, ao ingressar na pós-graduação, muitas vezes têm a possibilidade de escolher entre os laboratórios para realizar suas pesquisas. Neste ponto, eles enfrentam o seguinte dilema: começar em um lugar onde todos estão sistematicamente incluídos em cada artigo publicado apenas porque fazem parte do laboratório ou ingressar em outro grupo onde devem usar um tempo considerável de pesquisa para serem incluídos em um artigo. Embora as generalizações sejam sempre delicadas, existe uma tendência que um aluno que trabalha em um laboratório onde todos “ficam com tudo” pode eventualmente acabar com mais publicações em seu currículo.
Mas isso não é tudo. Independentemente do que se possa pensar, o fato é que a quantidade de publicações influencia seriamente as chances de conseguir um emprego. Sim, existem comissões de seleção que entendem a problemática dos números (e, aliás, dos índices bibliométricos também), mas o fato é que a perspectiva de candidatos com mais publicações serem selecionados para o emprego é maior. E é aí que reside outro aspecto deste problema: que tipo de política editorial este jovem cientista agora empregado, tendo sido favorecido por mais artigos para conseguir a posição, vai adotar em seu próprio laboratório, agora que ele é “o chefe”?
Como salientado, discutir a autoria é um daqueles tópicos desagradáveis que podem levar rapidamente a conclusões erradas. No entanto, problemas ligados à publicação têm que ser levados aos alunos de pós-graduação (por ex., Perceptions of Graduate Students at the University of São Paulo about Plagiarism Practices in Academic Works9), que precisam de certa orientação. Em relação à autoria de conveniência, são inúmeros os motivos para colaborações que resultam em múltiplas realizações construtivas, e não há dúvida de que a ciência caminha nesta direção. As razões para ter vários autores em um artigo incluem (mas não estão limitados a) o aprimoramento geral da pesquisa, a troca de experiências entre diferentes instituições ou pesquisadores com diferentes formações acadêmicas, a transferência de conhecimento entre centros científicos mais e menos experientes, e a abertura de novas oportunidades de pesquisa. Mas em tempos de negacionismo científico, claramente exposto pela atual pandemia, não há dúvida de que ações que previnam a má conduta científica são necessárias, inclusive abordando a questão da concessão correta de autoria a quem a mereça. Ainda assim, não está claro como lidar com a autoria de conveniência e evitá-la, especialmente considerando a escalada da pressão excessiva sobre estudantes e jovens cientistas em relação a publicações que, mesmo se ignoradas ou minimizadas, simplesmente estão lá. Muito cuidado também deve ser tomado para não introduzir regras que inibam a interação entre pesquisadores para alcançar resultados melhores e mais consistentes do que se cada um agisse independentemente. Isso seria um desserviço perigoso para a ciência e deve ser evitado a todo custo. Por outro lado, deve ficar claro para a nova geração de pesquisadores que a simples “estratégia de adicionar autoria” para estourar suas publicações não é o caminho correto a seguir e pode trazer implicações éticas negativas que os acompanhará ao longo de toda a sua carreira.
Felizmente, alternativas podem ser encontradas, pois seria triste ter de renunciar ao fato de que a autoria de conveniência se tornou uma estratégia adaptativa para estudantes e jovens pesquisadores “permanecerem no negócio”.
Notas
1. MELO, C.M.L., et al. COVID-19 pandemic outbreak: the Brazilian reality from the first case to the collapse of health services. An Acad Bras Cienc [online]. 2020, vol. 92, no. 4, e20200709, ISSN: 0001-3765 [viewed 18 August 2021]. http://doi.org/10.1590/0001-3765202020200709. Available from: http://ref.scielo.org/5gq9rc
2. BITAR, S. and STEINMETZ, W.A. Scenarios for the Spread of COVID-19 in Manaus, Northern Brazil. An Acad Bras Cienc [online]. 2020, vol. 92, no. 4, e20200615, ISSN: 0001-3765 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1590/0001-3765202020200615. Available from: http://ref.scielo.org/fxfhc7
3. BAUCHNER, H., FONTANAROSA, P.B. and GOLUB, R.M. Editorial Evaluation and Peer Review During a Pandemic – How Journals Maintain Standards. JAMA [online]. 2020, vol. 324, no. 5, pp. 453-454 [viewed 18 August 2021]. http://doi.org/10.1001/jama.2020.11764. Available from: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2767892
4. BANDODKAR, N.R. and GROVER, V. Factors Influencing the Extent of Co-Authorship in IS Research: An Empirical Investigation. Commun Assoc Inf Syst [online]. 2016, vol. 38, pp. 84-105 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.17705/1CAIS.03803. Available from: https://aisel.aisnet.org/cais/vol38/iss1/3/
5. ROGERS, L.F. Salami Slicing, Shotgunning, and Ethics of Authorship. AJR AM J Roentgenol [online]. 1999, vol. 173, no. 2, pp. 265 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.2214/ajr.173.2.10430115. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10430115/
6. SHEWAN, L.G. and COATS, A.J. Ethics in the authorship and publishing of scientific articles. Int J Cardiol [online]. 2010, vol. 144, pp. 1-2 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1016/j.ijcard.2010.07.030. Available from: https://www.internationaljournalofcardiology.com/article/S0167-5273(10)00557-7/fulltext
7. MCNUTT, M.K., et al. Transparency in authors’ contributions and responsibilities to promote integrity in scientific publication. Proc Natl Acad Sci USA [online]. 2018, vol. 115, no. 11, pp. 2557-2560 [viewed 18 August 2021]. https://doi.org/10.1073/pnas.1715374115. Available from: https://www.pnas.org/content/115/11/2557
8. KELLNER, A.W.A. Cartas | 268: Autoria de conveniência [online]. 2018, Revista Pesquisa FAPESP [viewed 18 August 2021]. Available from: https://revistapesquisa.fapesp.br/cartas-268/
9. KROKOSCZ, M. and FERREIRA, S.M.S.P. Perceptions of Graduate Students at the University of São Paulo about Plagiarism Practices in Academic Works. An Acad Bras Cienc [online]. 2020, vol. 91, no. 2, e20180196, ISSN: 0001-3765 [viewed 18 August 2021]. http://doi.org/10.1590/0001-3765201920180196. Available from: http://ref.scielo.org/9f8rpy
Referências
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Sobre Alexander W.A. Kellner
Professor Titular e membro da Academia Brasileira de Ciências, é editor-chefe dos AABC. Realizou doutorado na Columbia University (Nova York) e atua no Museu Nacional/UFRJ, para qual foi eleito diretor (2018-2022). Desenvolve pesquisas na área de paleontologia, em especial a evolução e diversificação de répteis fósseis, sobretudo dinossauros e pterossauros (vertebrados alados). Além de diferentes regiões brasileiras, realizou atividades de campo em países como Antártica, Irã, China, Argentina e Chile.
Artigo original em inglês
https://doi.org/10.1590/0001-37652021933
Traduzido do original em inglês por Lilian Nassi-Calò.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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