Por Lilian Nassi-Calò
O acesso aberto (AA) a resultados de pesquisa científica é a forma mais justa de prestar contas à sociedade sobre os investimentos em pesquisa, especialmente aquelas financiadas com recursos públicos. Desde o início do Movimento de Acesso Aberto no final dos anos 80, inúmeras organizações, instituições de pesquisa e nações adotaram políticas e mandatos que determinam a disponibilização em AA dos resultados de pesquisa científica. A UNESCO foi pioneira, em 1999, por meio da Declaração sobre a Ciência e Uso do Conhecimento Científico (Declaration on Science and the Use of Scientific Knowledge). A seguir vieram os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (US National Institutes of Health, NIH) a adotar sua Política para o Compartilhamento de Dados (Data Sharing Policy), transformada em mandato em 2008, para citar apenas dois de uma extensa lista.
O mundo atual reconhece as tecnologias digitais como o motor que move transformações econômicas, científicas e sociais, onde a informação (open data) constitui uma commodity valiosa, que a cada dia se liberta de mais fronteiras e direitos, podendo ser usada para tornar o mundo melhor.
Seguindo o exemplo de países líderes em pesquisa científica como os EUA, Reino Unido, Alemanha, Canadá, Holanda e Itália, a França, por meio do Centre National de la Recherche Scientifique (Centro Nacional de Pesquisa Científica, CNRS) e do Ministère De l’Enseignement Supérieur et de la Recherche (Ministério da Educação Superior e da Pesquisa, MESR) elaborou um Projeto de Lei denominado “Por uma República Digital” (Pour une République Numérique).
O projeto inclui a definição de uma via protegida de acesso aos resultados científicos e seu uso por pesquisadores nas plataformas de Informação Científica e Técnica (ICT) e aplicação deste direito aos trabalhos resultantes de pesquisa financiada com recursos públicos. Além disso, a Comissão Europeia (CE) lidera uma reflexão sobre a evolução dos direitos autorais e direitos conexos, recomendando aos países-membros que tomem medidas que favoreçam a circulação e compartilhamento de resultados de pesquisa.
Com a finalidade de assegurar a transparência e participação da sociedade na redação do projeto de lei antes de sua submissão ao Conselho de Estado, a França disponibilizou o texto da lei1 para consulta pública na Internet desde o dia 26 de setembro. Nas três semanas seguintes à data será possível a todas as pessoas – cidadãos franceses ou não – sugerirem modificações e melhorias na lei. Estas sugestões também estarão abertas a comentários de usuários da Internet. As sugestões e comentários serão avaliados pela comissão encarregada de redigir a lei e algumas delas poderão de fato ser incluídas. O governo da França irá responder oficialmente às sugestões mais frequentes dos internautas e os autores das três contribuições mais relevantes se encontrarão com o Ministro de Estado para Assuntos Digitais para explicar suas propostas em detalhes.
Os objetivos do projeto de lei incluem:
1. Disseminação mais ampla de dados e conhecimento. O acesso aberto a dados e informação de interesse geral favorece a economia baseada em conhecimento através do amplo acesso a resultados de pesquisa científica pública.
2. Direitos iguais a todos os usuários da Internet. O acesso à Internet é um direito de todos e não deve ser limitado aos favorecidos, preservando, entretanto, a privacidade de todos. Dados digitais pessoais (e-mails, documentos e outros) devem ser facilmente recuperados mediante solicitação a provedores.
3. Acesso à Internet é considerado um pré-requisito de inclusão social, desenvolvimento profissional e vida social. Está previsto acesso a portadores de deficiências e serviço de acesso subsidiado pelo governo será fornecido a famílias com problemas financeiros.
Com relação à pesquisa científica, a Lei “Por uma República Digital” estabelece como pontos principais:
a. Os direitos autorais exclusivos de dados e literatura resultantes de pesquisa financiada com recursos públicos não devem ser transferidos a publishers.
b. Pesquisadores devem ter o direito de arquivar seus dados e trabalhos em formato digital automaticamente sem período de embargo imposto pelos publishers.
c. A mineração de dados (data mining) e serviços relacionados tem um papel primordial na promoção do AA a dados e literatura científica. Estes serviços não devem ser dificultados por plataformas comerciais que distribuem dados e literatura.
O projeto de lei sobre o acesso à ICT contou, desde o início de sua construção, com a redação pelos próprios pesquisadores que integram a comissão CNRS-MESR. Entretanto, seu texto não foi tão feliz como poderia ter sido. A redação do Artigo 9 que trata do Acesso Aberto, em particular, vai contra os princípios da livre disseminação do conhecimento científico. Um parágrafo do referido artigo cita “Os direitos de exploração sob formato digital […] podem ser cedidos a título exclusivo a um publisher”, o que contradiz os princípios ditados acima. O texto deveria excluir a possibilidade de ceder a título exclusivo os direitos de exploração a um publisher quando a pesquisa foi financiada com recursos públicos.
No que tange a períodos de embargo, a CE em sua recomendação de 17 de julho de 20122 sobre acesso à informação científica, propõe que “publicações resultantes de pesquisa financiada com recursos públicos sejam livremente acessíveis, de preferência imediatamente, e o mais tardar seis meses após a data de publicação e doze meses da data de publicação para estudos em ciências sociais e humanidades”. O Artigo 9, entretanto, menciona um período de embargo de um ano para artigos nas disciplinas científicas e dois anos para ciências humanas, o dobro do proposto pela CE.
Finalmente, sobre propriedade intelectual, o Artigo 9 dispõe que “a disponibilização de um artigo não deve originar nenhuma exploração comercial”, o que é muito vago e sugere a possibilidade que um publisher monopolize os benefícios econômicos que poderiam se originar de uma descoberta científica, o que por sua vez constituiria um bloqueio à exploração do conhecimento científico.
O período de consulta pública do projeto de lei se estende até domingo, 18 de outubro. Até lá, é possível a qualquer usuário da Internet acessar a página da consulta pública (em francês)3 e votar contra (“Pas d’ accord) a atual redação do Artigo 9, pelos motivos expostos acima. Ademais, aconselha-se a acessar também a alteração do Artigo 9 proposta pelo Diretor do CNRS, Renaud Fabre4, votando a favor (D’accord) do acesso aberto à literatura e dados científicos, redução do período de embargo para 6 meses/1 ano e possibilidade de exploração comercial dos resultados de pesquisa.
O governo da França está preparando um Livro Branco5 com a participação de importantes atores sobre os desafios da publicação digital e dados de pesquisa pública, que estará disponível no portal da Direction de l’Information Scientifique et Technique (Direção de Informação Científica e Técnica, DIST).
Para os representantes do CNRS e autores do projeto de lei, é fundamental excluir “qualquer exceção francesa desfavorável do texto final que sejam tão protetoras da pesquisa quanto o são em outros países”. No seu entender, “para prover acesso aberto ao conhecimento, trata-se de dar aos atores da sociedade os meios de interagir com a pesquisa”.
Sua participação é muito importante, vote você também.
Notas
1. Décret n° 2015-1151 du 16 septembre 2015. Available from: http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000031180596&dateTexte=&oldAction=rechJO&categorieLien=id&idJO= JORFCONT000031180576
2. Recommendation CE du 17 juillet 2012 (C(2012) 4890). Available from: https://ec.europa.eu/research/science-society/document_library/pdf_06/recommendation-access-and-preservation-scientific-information_fr.pdf
3. Consultation Projet de Loi pour une République Numérique. Available from: https://www.republique-numerique.fr/consultations/projet-de-loi-numerique/consultation/consultation/opinions/section-2-travaux-de-recherche-et-de-statistique/article-9-acces-aux-travaux-de-la-recherche-financee-par-des-fonds-publics
4. Proposition de Renaud Fabre, Directeur du CNRS-DIST pour le Projet de Loi pour une République Numérique. Available from: https://www.republique-numerique.fr/consultations/projet-de-loi-numerique/consultation/consultation/opinions/section-2-travaux-de-recherche-et-de-statistique/article-9-acces-aux-travaux-de-la-recherche-financee-par-des-fonds-publics/versions/une-duree-d-embargo-plus-courte-ne-pas-entraver-le-tdm-fouille-de-texte-et-de-donnees-et-ne-pas-interdire-une-exploitation-commerciale
5. Livro Branco (Libre Blanc ou White Paper) é um documento oficial publicado por um governo ou uma organização internacional, a fim de servir de informe ou guia sobre algum problema e como enfrentá-lo. (Fonte: Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/White_paper)
Referências
Consultation Loi Numerique. Available from: http://www.cnrs.fr/dist/consultation-loi-numerique.html
Consultation Projet de Loi pour une République Numérique. Available from: https://www.republique-numerique.fr/consultations/projet-de-loi-numerique/consultation/consultation/opinions/section-2-travaux-de-recherche-et-de-statistique/article-9-acces-aux-travaux-de-la-recherche-financee-par-des-fonds-publics
Décret n° 2015-1151 du 16 septembre 2015. Available from: http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000031180596&dateTexte=&oldAction=rechJO&categorieLien=id&idJO= JORFCONT000031180576
Direction de l’Information Scientifique et Technique. Available from: http://www.cnrs.fr/dist/
FAUSTO, S. Evolução do Acesso Aberto – breve histórico. SciELO em Perspectiva. [viewed 07 October 2015]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2013/10/21/evolucao-do-acesso-aberto-breve-historico/
Proposition de Renaud Fabre, Directeur du CNRS-DIST pour le Projet de Loi pour une République Numérique. Available from: https://www.republique-numerique.fr/consultations/projet-de-loi-numerique/consultation/consultation/opinions/section-2-travaux-de-recherche-et-de-statistique/article-9-acces-aux-travaux-de-la-recherche-financee-par-des-fonds-publics/versions/une-duree-d-embargo-plus-courte-ne-pas-entraver-le-tdm-fouille-de-texte-et-de-donnees-et-ne-pas-interdire-une-exploitation-commerciale
Recommendation CE du 17 juillet 2012 (C(2012) 4890). Available from: https://ec.europa.eu/research/science-society/document_library/pdf_06/recommendation-access-and-preservation-scientific-information_fr.pdf
Sobre Lilian Nassi-Calò
Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
Leia o comentário em inglês, por Hélein Frédéric:
http://blog.scielo.org/en/2015/10/09/france-prepares-bill-to-regulate-open-access/#comment-108216