Por Anna Tarrant e Kahryn Hughes
A reutilização de dados qualitativos tornou-se cada vez mais possível através da proliferação de fontes de dados acessíveis e da inovação dos métodos de pesquisa. Nas últimas duas décadas, houve investimentos em larga escala em arquivos e repositórios capturando um “tsunami” de novos dados. Além disso, houve importante inovação em métodos abrangentes de reutilização qualitativa de dados (por exemplo, Irwin e Winterton, 2011; Davidson, et al. 2018; Hughes, et al. 2020; Jamieson e Lewthwaite, 2019; Tarrant e Hughes, 2019; Hughes e Tarrant, 2020). Os dados qualitativos não são apenas importantes documentos da vida humana, eles são um recurso infinitamente criativo que nos conecta às histórias sociais muito mais longas das quais fazemos parte. Como o lockdown torna desafiadoras as abordagens tradicionais à pesquisa qualitativa, agora é um momento apropriado para reconsiderar a tendência de a geração de dados primários ser a forma de “ir para” o trabalho de campo e novas pesquisas.
Reutilização de dados e modos de captura
Enquanto repositórios, recursos e dados, juntamente com novos métodos de reutilização de dados, apresentam um enorme potencial para a geração de novos conhecimentos, eles também confrontam o pesquisador com desafios familiares endereçados em abordagens mais tradicionais do trabalho de campo. Isso inclui questões sobre como acessamos amostras, gerenciamos os dados disponíveis e como determinamos se e como os dados gerados podem ser utilizados como evidência para informar sobre o mundo social. As oportunidades analíticas geradas por meio da análise secundária qualitativa (qualitative secondary analysis, QSA) exigem que participemos destas perguntas, embora estas sejam frequentemente reformuladas em torno daquelas relativas ao “contexto” para pesquisadores que redirecionam os dados por meio de novos esforços empíricos. O caráter contextualizado da produção qualitativa de dados, por exemplo, requer um trabalho teórico considerável, ou “recontextualização”, de pesquisadores que reutilizam dados, bem como um exame cuidadoso e preciso das dimensões complexas de sua relação com os dados. De maneira semelhante, a QSA também exige que revisitemos os métodos de coprodução, como até que ponto a geração de “insights” de dados depende de formas copresentes, próximas e síncronas de envolvimento pessoal. Portanto, a QSA envolve um engajamento cuidadoso e crítico com os “contextos incorporados”, tanto dos estudos anteriores quanto dos contextos subsequentes de pesquisadores que buscam entender os dados existentes e a extensão de sua utilidade.
Estas questões costumam estar ligadas a outro conjunto de preocupações sobre até que ponto novas pesquisas podem ser limitadas ao trabalhar com conjuntos de dados qualitativos existentes. Estes conjuntos de dados são geralmente considerados “fixos” em termos de conexão ou expressão dos contextos de estudo “originais”. Também pode parecer haver uma falta de oportunidade formativa na geração de novos dados utilizando conjuntos de dados que foram produzidos por outras muitas vezes desconectadas, equipes de pesquisa. No entanto, nosso trabalho conceitua a análise secundária qualitativa como um processo em que os pesquisadores procuram capturar dados de diferentes ordens. Este esforço exige o envolvimento de questões sobre como os conjuntos de dados são redirecionados e reformulados, tanto como objetos teóricos, quanto como “evidência”. A partir desta posição, a “distância” temporal e epistêmica não são déficits analíticos inevitáveis. De fato, esta “distância” pode oferecer oportunidades para novos insights de formas nem sempre disponíveis para os pesquisadores próximos aos contextos formativos da pesquisa. A conscientização das possibilidades destes tipos de distância temporal, bem como o desenvolvimento de um novo vocabulário para explicar a pesquisa de QSA, está mudando o debate das questões sobre se devemos reutilizar os dados para questões de como os dados podem falar além dos contextos de geração original e quais métodos de QSA podem ser desenvolvidos para fazer isso.
Homens, Pobreza e Vida Útil de Cuidados: um exemplo de trabalho de campo reutilizando dados
Usando conjuntos de dados no Timescapes Archive, o trabalho de Anna fornece um exemplo de métodos possíveis de QSA, desafiando ideias de “fixação do contexto” e significado, e é um exemplo de quão insights profundos e detalhados podem ser alcançados com a reutilização ostensiva de conjuntos de dados e amostras “pequenos”. Seu QSA envolveu o desenvolvimento e o uso de um novo desenho de pesquisa, onde análises de dois conjuntos de dados existentes foram realizadas simultaneamente com a revisão da literatura. Outros desenvolvimentos incluem:
- Testar novas técnicas metodológicas para interagir com dados existentes (por exemplo, Tarrant e Hughes, 2019; 2020);
- Familiarização com os conjuntos de dados existentes, reunindo-os e tomando amostras teoricamente a partir deles;
- Trazer novas perguntas para novas amostras e gerar novos insights a partir de suas análises;
- Desenvolver novas questões de pesquisa empíricas, e
- Manutenção e extensão de amostras de estudos existentes, bem como grupos e redes de partes interessadas (Men, Poverty and Lifetimes of Care).
Por meio destas várias atividades, novas direções são abertas para refletir sobre questões relativas ao envolvimento formativo dos pesquisadores com os dados existentes, bem como inovações metodológicas para abordá-las. Além disso, o trabalho demonstra o potencial criativo de recapturar dados de maneiras novas e inovadoras, tanto na forma como os conjuntos de dados existentes podem ser reutilizados para os propósitos de um novo pensamento, como também maneiras eficazes de levar adiante os relacionamentos existentes das pesquisas anteriores.
Ensino e Pesquisa
Os planos de trabalho de campo de ensino de pesquisadores de pós-graduação podem se sentir especialmente impactados pela pandemia global. Os efeitos esperados de longo prazo no setor de ensino superior já causaram preocupação, principalmente em termos de oferta de ensino, que por necessidade foi transferido para on-line. Também há implicações claras para os estudantes, que planejam realizar trabalhos de campo presencial. Para os estudantes de ciências sociais, as dissertações constituem um componente importante de seus cursos, facilitando a união de novos aprendizados, sobre o método e o substantivo, com o engajamento em pesquisas no mundo real. Usando as oportunidades analíticas de sua “remoção temporal”, os alunos que reutilizam os dados têm o potencial de ampliar os métodos usados, gerar novos e relevantes insights sobre o mundo social e, assim, se incorporar a históricos de pesquisa muito mais longos.
Também existem recursos valiosos para apoiar uma mudança radical de atitudes em relação à reutilização de dados qualitativos para o trabalho de campo para propósitos didáticos. Por exemplo, repositórios de “acesso livre”, como o Timescapes Archive e o UK Data Archive, contêm conjuntos de dados e recursos sob medida para apoiar o design do curso e sua entrega.
Afirmando o valor do QSA
O objetivo deste blog post, inspirado em parte por nossa nova coleção editada Qualitative Secondary Analysis, é ilustrar o enorme potencial quase inexplorado proporcionado pelos recursos e métodos de reutilização qualitativa e QSA. Ao demonstrar seu valor aos pesquisadores em todas as etapas da carreira, defendemos o aumento da aceitação destes métodos como formas discretas e importantes de trabalho de campo. Propomos que a reutilização qualitativa de dados e a QSA sejam viáveis em qualquer escala, adequados para longos anos de análise (como nosso trabalho envolveu) ou para prazos muito mais curtos de estudantes de pesquisa de pós-graduação. No entanto, como indicamos acima, o processo pelo qual os pesquisadores se envolvem com os dados existentes podem ser usados para “falar do mundo social” e a subsequente análise e imersão dos dados sempre serão uma tarefa demorada, exigindo trabalho cuidadoso e reflexivo. No entanto, embora a crise da COVID-19 possa restringir a pesquisa frente a frente, os dados arquivados sustentam as conexões dos pesquisadores com históricos muito mais longos de pesquisa e oferecem oportunidade para inovações de pesquisa novas e empolgantes.
Referências
DAVIDSON, E., et al. Big data, qualitative style: a breadth-and-depth method for working with large amounts of secondary qualitative data. Quality & Quantity [online]. 2019, vol. 53, pp. 363-376 [viewed 10 June 2020]. DOI: 10.1007/s11135-018-0757-y. Available from: https://link.springer.com/article/10.1007/s11135-018-0757-y
HUGHES, K., HUGHES, J. and TARRANT, A. Re-approaching interview data through qualitative secondary analysis: interviews with internet gamblers. International Journal of Social Research Methodology [online]. 2020 [viewed 10 June 2020]. DOI: 10.1080/13645579.2020.1766759. Available from: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13645579.2020.1766759
IRWIN, S. and WINTERTON, M. Qualitative Secondary Analysis: A Guide to Practice [online]. Timescapes. 2012 [viewed 10 June 2020]. Available from: http://www.timescapes.leeds.ac.uk/assets/files/methods-guides/timescapes-irwin-secondary-analysis.pdf
TARRANT, A. and HUGHES, K. Qualitative Secondary Analysis: Building Longitudinal Samples to Understand Men’s Generational Identities in Low Income Contexts. Sociology [online]. 2019, vol. 53, no. 3, pp. 538-553 [viewed 10 June 2020]. DOI: 10.1177/0038038518772743. Available from: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0038038518772743
TARRANT, A. Getting out of the swamp? Methodological reflections on using qualitative secondary analysis to develop research design. International Journal of Social Research Methodology [online]. 2016, vol. 20, no. 6, pp. 599-611 [viewed 10 June 2020]. DOI: 10.1080/13645579.2016.1257678. Available from: https://www.tandfonline.com/doi/citedby/10.1080/13645579.2016.1257678?scroll=top&needAccess=true
Links externos
Men, Poverty and Lifetimes of Care <https://menandcare.blogs.lincoln.ac.uk/>
Timescapes Archive <https://timescapes-archive.leeds.ac.uk/>
UK Data Archive <https://www.data-archive.ac.uk/>
Sobre Anna Tarrant
Dr Anna Tarrant é Professora Associada de Sociologia da University of Lincoln e pesquisadora do UKRI Future Leaders, liderando um estudo participativo longitudinal qualitativo de quatro anos, examinando o progresso dos pais e as necessidades de apoio dos jovens pais, denominado Seguindo Jovens Pais Adiante(Following Young Fathers Further).
Sobre Kahryn Hughes
Kahryn Hughes é pesquisadora reconhecida internacionalmente no campo da análise secundária qualitativa. É editora líder da publicação “Qualitative Secondary Analysis”, e é membro sênior do National Centre for Research Methods (NCRM), responsável pelo treinamento de métodos de pesquisa Qualitativa Longitudinal e Análise Secundária Qualitativa para todos os cientistas sociais do Reino Unido, Diretora do Arquivo Timescapes e Editora-Chefe da BSA/SAGE Journal: Sociological Research On-line.
Artigo original em inglês
Traduzido do original em inglês por Lilian Nassi-Calò.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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