Saiu no NY Times: Biólogos se rebelam e publicam diretamente na Internet

Por Lilian Nassi-Calò

A avaliação por pares é amplamente reconhecida como uma das etapas mais importantes da comunicação científica, pois tem a função de assegurar a validade, qualidade e credibilidade da pesquisa. É também, no entanto, a etapa mais lenta do processo de publicação, podendo demandar de poucos meses a alguns anos, se considerarmos que o artigo pode não ser aceito no primeiro periódico a que foi submetido.

A comunicação científica na chamada “Era da Internet” considera estes prazos demasiadamente longos. Alternativas como a publicação individualizada de artigos pelos periódicos e repositórios de preprints vêm ganhando força e se consolidando nos últimos anos. E mais, é possível associar preprints e avaliação por pares pós-publicação, segundo os participantes da conferência ASAP Bio, ocorrida em fevereiro de 2016 no Howard Hughes Medical Institute, nos EUA.

O programa SciELO esteve presente na ASAP Bio e apoia a tendência atual de acelerar a disseminação dos resultados de pesquisa, com destaque para a publicação continuada de artigos nos periódicos que indexa e publica. Esta modalidade de publicação foi lançada pelos denominados megajournals, como os da coleção Public Library of Science (PLoS) e The BMJ (anteriormente, British Medical Journal).

A pré-publicação de artigos online em repositórios de acesso aberto visa principalmente acelerar a disseminação e compartilhamento de resultados de pesquisa e subsidiar o avanço da ciência. Não menos importante é a intensão dos pesquisadores em assegurar a prioridade da descoberta. Ademais, a pré-publicação não exclui a submissão simultânea ou posterior do artigo a um periódico, que teria por finalidade cumprir com os requisitos de agências de fomento, progressão na carreira e obter reconhecimento dos pares.

Um artigo de Ronald Vale, da Universidade da Califórnia em Berkeley e do Howard Hughes Medical Institute, EUA depositado inicialmente como preprint1 e posteriormente publicado no PNAS2 em 2015, analisa em detalhes os aspectos da pré-publicação em biologia. O autor apresenta como principais vantagens do preprint a pronta disponibilização dos resultados; o maior escrutínio a que o artigo está exposto à toda a comunidade científica ao invés de dois ou três pareceristas no processo clássico de avaliação por pares; a dissociação do prestígio do título do periódico; e a economia de recursos. Como principais desvantagens, Vale aponta a falta de avaliação por pares, que poderia levar à qualidade inferior dos artigos e a sobrecarga de informação. Entretanto, o autor ressalta que os repositórios dispõem de mecanismos de filtro para barrar artigos pouco científicos. Além disso, a reputação em jogo do autor e/ou de sua instituição impediria o compartilhamento de artigos de má qualidade. Sobre a sobrecarga de informação, Vale é de opinião de que os cientistas já estão sobrecarregados com informação, e bastaria aperfeiçoar métodos de seleção e recuperação da literatura para reduzi-la.

Segundo Vale, para que a publicação de preprints se torne prática frequente e bem-sucedida, em princípio, é necessário que dois aspectos sejam satisfeitos. O primeiro é que a comunidade científica – e principalmente as agências de fomento – estejam de acordo em reconhecer os preprints como produção científica relevante. O segundo é que os periódicos aceitem considerar para publicação materiais previamente depositados como preprints.

Estes aspectos já haviam sido avaliados pelo Grupo de Trabalho da Open Science Initiative (OSI) em outubro de 20143, patrocinado pela UNESCO. O informe resultante enfoca na reforma do sistema de publicação científica vigente atualmente por meio da análise pormenorizada de tópicos como o Acesso Aberto, os modelos econômicos da publicação científica, a avaliação de desempenho de pesquisadores e o progresso na carreira com base no prestígio dos periódicos.

Em post recente neste blog, Jan Velterop4 retoma o tema da reforma do sistema de publicação acadêmica através de dois tópicos polêmicos que vem sendo discutidos atualmente, o site Sci-Hub e os periódicos híbridos. Segundo Velterop, o risco de ambos para a comunicação científica não está no seu aspecto antiético, porém no fato de impedir que a publicação científica evolua de acordo com as demandas da comunidade científica moderna.

O jornal norte-americano The New York Times publicou em 15 de março em sua página de Ciência5 artigo sobre a iniciativa ASAP Bio, informando que Carol Greider, da Johns Hopkins University, EUA, se tornou a terceira bióloga agraciada com o Premio Nobel a publicar suas descobertas em um repositório de acesso aberto, o bioRxiv, antes de submetê-lo a um periódico científico, considerado como publicação “oficial”. Por meio de sua conta no Twitter, a Dra. Greider celebra a publicação no bioRxiv e insere no comentário a hashtag #ASAPbio.

O repositório de preprints bioRxiv foi criado pelo Cold Spring Harbor Laboratory nos mesmos moldes do arXiv, tradicional repositório de preprints nas áreas da matemática, física, astrofísica, e ciências da computação, criado em 1991 por Paul Ginsparg. Os arquivos de preprints foram considerados exemplos de “abertura vertical” dentro do acesso aberto na publicação científica por Adam Smith, relator do Workshop on Alternative Open Access Publishing Models6,7 ou simplesmente AlterOA, evento que promoveu uma ampla discussão sobre o futuro do Acesso Aberto na União Europeia em outubro de 2015.

O bioRxiv é uma iniciativa relevante e oportuna criada há três anos que, como o apoio de cientistas como Carol Greider, deverá crescer e atingir o status de seu predecessor arXiv. Por ora, entretanto, registrou no ano passado, 1.771 artigos depositados, contra milhões publicados em periódicos biomédicos tradicionais.

Desde o apoio demonstrado ao bioRxiv durante o ASAP Bio, pesquisadores vem aumentando o número de artigos depositados. Apenas no primeiro trimestre de 2016 (até 18 de março), o repositório registra 673 documentos, quase um terço do total depositado em 2015. E com a divulgação e apoio que vem recebendo, não apenas de cientistas renomados, mas também de jovens pesquisadores, espera-se que aumente ainda mais. Stephen Floor, biólogo molecular na Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA, tuitou “É preciso experimentar a sensação de liberdade de comunicar imediatamente suas descobertas via preprint apenas uma vez para se tornar um entusiasta”. Steve Shea, neurocientista do Cold Spring Harbor Laboratory comenta no microblog “Nosso novo artigo. Permaneceu por um ano e meio em revisão, mas agora você pode ler e comentar”, referindo-se ao livre acesso ao seu artigo recém depositado no bioRxiv.

Além do aspecto da rapidez da publicação – e consequente atribuição imediata de autoria da ideia – outro fator motiva os cientistas a depositar seus artigos inicialmente em repositórios de preprints, o conceito da ciência como bem público. A pesquisa é, em grande parte, financiada com recursos públicos que provém de impostos pagos por todos. Nada mais justo do que retribuir disponibilizando os resultados, tão logo quanto possível, em acesso aberto na Internet. Harold Varmus, outro pesquisador agraciado com o Nobel, ex-diretor do NIH, histórico defensor do Acesso Aberto e um dos organizadores do evento ASAP Bio, declarou em uma conferência que foi amplamente tuitada “Conversações devem também pensar na ciência como bem público global. Preprints podem ser bons para carreiras…” e “Devemos também cumprir nosso contrato com o público que financia nossa capacidade de realizar pesquisa”.

Entretanto, pesquisadores, principalmente aqueles em início de carreira, relutam em depositar seus artigos em repositórios de preprints por temer que, assim procedendo, estão potencialmente diminuindo a chance – já pequena – de ter seus artigos aceitos para publicação em periódicos de renome como Nature, Science ou Cell. Os dois primeiros adotam a política de tratar artigos depositados como preprints como tendo a mesma prioridade de manuscritos não pré-publicados. Outros, porém, não consideram preprints e alguns, como Cell, orientam os autores que tem a intensão de depositar preprints a consultar antes o periódico. Uma vez que a publicação em periódicos high profile pode definir a carreira de um pesquisador, muitos deles preferem não arriscar esta possibilidade publicando preprints.

Na verdade, muitos pesquisadores estão divididos entre as vantagens de ter seus resultados rapidamente publicados como preprints e as vantagens da publicação tradicional incluindo a revisão por pares que leva ao aperfeiçoamento do manuscrito e traz o reconhecimento associado ao prestígio do periódico. Outro cientista agraciado com o Nobel, Randy Schekman da Universidade da Califórnia em Berkeley, EUA e editor do periódico eLife, recebeu o seguinte comentário tuitado por um colega: “Schenkman reforça a importância da avaliação por pares para vetar e aperfeiçoar artigos e a importância do nosso papel como pareceristas #ASAPbio”.

Situações de emergência em saúde pública como as epidemias da gripe H1N1 em 2009, Ebola em 2014 e o Zika vírus atualmente levaram periódicos a disponibilizar livremente artigos antes disponíveis apenas mediante assinaturas para facilitar e impulsionar o trabalho de pesquisadores em todo o mundo na descoberta de testes diagnósticos, tratamentos e vacinas. A rápida proliferação dos surtos de Zika vírus, inicialmente nas Américas, e agora se espalhando por todos os continentes levou muitos periódicos a declarar que não penalizariam os pesquisadores que publicassem preprints antes de submeter seus artigos. A reação dos cientistas foi questionar porque traçar uma linha no tema Zika vírus e não estender o benefício a todos?

A determinação em tornar os artigos científicos livremente acessíveis a todos levou um pesquisador no Cazaquistão a piratear trabalhos acadêmicos acessíveis por assinatura e disponibilizá-los no site aberto Sci-Hub. Pesquisadores ponderam que se preprints fossem a regra, não haveria necessidade de piratear artigos. Richard Sever, responsável pelo servidor do bioRxiv no Cold Spring Harbor Laboratory compartilhou em sua conta no Twitter: “24-48h para postar no bioRxiv. Qualquer pessoa no mundo com um computador pode ler. Apenas isso”.

Os defensores do sistema clássico de publicação argumentam contra os preprints alegando que são prejudiciais à ciência de qualidade. Emilie Marcus, editor da Cell, relatou na conferência ASAP Bio que em conversa com mais de 100 cientistas os editores do renomado periódico constataram que o que move pesquisadores a fazer uso de preprints é principalmente assegurar a autoria da descoberta e na ânsia de fazê-lo poderia comprometer a qualidade do trabalho.

Partidários de preprints contra argumentam dizendo que os pesquisadores têm uma reputação a zelar e não publicariam, nem mesmo preprints, de má qualidade. De qualquer forma, artigos depositados no bioRxiv, por exemplo, estão claramente assinalados para indicar que “contém informação que ainda não foi aceita ou endossada pela comunidade médica ou científica”. Qualquer pesquisador está a par, também, que há inúmeros artigos submetidos a revisão por pares comprovadamente falhos, e para muitos, revisão por pares pós-publicação seria uma forma mais rigorosa e justa de exercer este controle de qualidade.

Na verdade, os cientistas não pretendem romper com o sistema tradicional de publicação científica através de preprints, querem apenas que ambos coexistam. Outros vão além, como o Reitor da Escola de Medicina de Harvard, EUA, Jeffrey S. Flier, afirmando que perturbar a publicação científica pode ser bom para a ciência. Ele posta em seu Twitter “Preprints perturbam a ciência? Talvez devam. A perturbação é necessária, por muitas razões”.

Alguns pesquisadores, entretanto, não veem com bons olhos uma competição entre periódicos e preprints. Se as bibliotecas universitárias desistirem de assinaturas de periódicos em favor de preprints, os periódicos, em represália, podem revogar sua permissão para usá-las, forçando os cientistas a fazer uma escolha difícil.

O movimento em favor de preprints pode depender de outro movimento iniciado pelos próprios biólogos, a Declaration on Research Assessment (DORA), firmada em 2012, que recomenda não utilizar o Fator de Impacto para avaliar pesquisadores para contratações e promoções na carreira8. Defensores do ASAP Bio afirmam que será necessária uma mudança cultural na forma de avaliar publicações, baseando-a na essência do conteúdo e não onde foi publicada. Segundo Michael Eisen, defensor do ASAP Bio, esta discussão é mais que oportuna, “É incrível como levou 20 anos para ‘cientistas postarem seus trabalhos na Internet’ não ser visto como radical #ASAPbio”. Tudo indica que esta é a direção a seguir.

Notas

1. VALE, R.D. Accelerating Scientific Publication in Biology. bioRxiv. 2015. DOI: 10.1101/022368. No prelo.

2. VALE, R.D. Accelerating Scientific Publication in Biology. PNAS. 2015, vol. 112, nº 44, pp. 13439-13446. DOI: 10.1073/pnas.1511912112. Available from: http://www.pnas.org/content/112/44/13439

3. THE OPEN SCIENCE INITIATIVE WORKING GROUP. Mapping the Future of Scholarly Publishing. Janeiro 2015. Available from: http://nationalscience.org/wp-content/uploads/2015/02/OSI-report-Feb-2015.pdf

4. VELTEROP, J. Sobre os riscos do SciHub e dos periódicos híbridos. SciELO em Perspectiva. [viewed 27 March 2016]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2016/03/22/sobre-os-riscos-do-scihub-e-dos-periodicos-hibridos/

5. ARMON, A. Handful of Biologists Went Rogue and Published Directly to Internet. The New York Times. 2016. Available from: http://nyti.ms/22iEqpz

6. Report of the Workshop on Alternative Open Access Publishing Models. European Commission. 2015. Available from: http://ec.europa.eu/digital-agenda/en/news/report-workshop-alternative-open-access-publishing-models

7. NASSI-CALÒ, L. Resultados do workshop AlterOA: recomendações para o futuro do Acesso Aberto. SciELO em Perspectiva. [viewed 18 March 2016]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2016/01/28/resultados-do-workshop-alteroa-recomendacoes-para-o-futuro-do-acesso-aberto/

8. NASSI-CALÒ, L. Declaração recomenda eliminar o uso do Fator de Impacto na Avaliação de Pesquisa. SciELO em Perspectiva. [viewed 19 March 2016]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2013/07/16/declaracao-recomenda-eliminar-o-uso-do-fator-de-impacto-na-avaliacao-de-pesquisa/

Referências

ARMON, A. Handful of Biologists Went Rogue and Published Directly to Internet. The New York Times. 2016. Available from: http://nyti.ms/22iEqpz

EISEN, M. and VOSSHALL, L.V. Associando Pre-Prints e Revisão por Pares Pós-Publicação para Publicação Científica Rápida, Barata e Efetiva [Publicado originalmente no blog “it is not junk” de Michael Eisen]. SciELO em Perspectiva. [viewed 18 March 2016]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2016/02/11/associando-pre-prints-e-revisao-por-pares-pos-publicacao-para-publicacao-cientifica-rapida-barata-e-efetiva-publicado-originalmente-no-blog-it-is-not-junk-de-michael-eisen/

Mapping the Future of Scholarly Publishing. The open science initiative working group. 2015. Available from: http://nationalscience.org/wp-content/uploads/2015/02/OSI-report-Feb-2015.pdf

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PACKER, A., et al. Acelerando a comunicação das pesquisas: as ações do SciELO. SciELO em Perspectiva. [viewed 18 March 2016]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2016/03/10/acelerando-a-comunicacao-das-pesquisas-as-acoes-do-scielo/

Report of the Workshop on Alternative Open Access Publishing Models. European Commission. 2015. Available from: http://ec.europa.eu/digital-agenda/en/news/report-workshop-alternative-open-access-publishing-models

VALE, R.D. Accelerating Scientific Publication in Biology. bioRxiv. 2015. DOI: 10.1101/022368. No prelo.

VALE, R.D. Accelerating Scientific Publication in Biology. PNAS. 2015, vol. 112, nº 44, pp. 13439-13446. DOI: 10.1073/pnas.1511912112. Available from: http://www.pnas.org/content/112/44/13439

VELTEROP, J. Sobre os riscos do SciHub e dos periódicos híbridos. SciELO em Perspectiva. [viewed 27 March 2016]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2016/03/22/sobre-os-riscos-do-scihub-e-dos-periodicos-hibridos/

Links externos

arXiv – http://arxiv.org/

ASAP Bio – http://asapbio.org/

bioRxiv – http://biorxiv.org/

Sci Hub – https://sci-hub.io/

 

lilianSobre Lilian Nassi-Calò

Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

NASSI-CALÒ, L. Saiu no NY Times: Biólogos se rebelam e publicam diretamente na Internet [online]. SciELO em Perspectiva, 2016 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2016/04/07/saiu-no-ny-times-biologos-se-rebelam-e-publicam-diretamente-na-internet/

 

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