Perfil dos pesquisadores que integram o cerne da ciência mundial em publicações

Índice h. Fonte: The University of Auckland.

“Publish or perish¹” – Publicar ou perecer é a máxima que governa a academia em todo o mundo há muitas décadas. O termo, segundo a Wikipédia, apareceu por primeira vez em contexto não acadêmico em 1932, em livro de autoria de H.J. Coolidge, e rege o desempenho do mundo acadêmico, no qual não há lugar para aqueles que não publicam com frequência artigos resultantes de sua atividade de pesquisa.

A forte pressão no meio acadêmico por publicar rápida e continuamente de forma a assegurar ou progredir na carreira acadêmica pode produzir distorções. Hoje em dia se tem notícia de aumento nos casos de resultados não reprodutíveis, autoria não justificada, plágio, autoplágio, publicação salame e outras formas pouco éticas de publicação, o que, paralelamente levou ao desenvolvimento de novas formas de detecção destas práticas insalubres.

Em recente publicação em PLoS ONE, pesquisadores liderados por John Ioannidis, da Universidade de Stanford, relatam um detalhado estudo na base Scopus do publisher Elsevier, no qual identificam uma fração de cerca de 150 mil pesquisadores que formam o cerne do universo de cerca de 15 milhões de pesquisadores ativos em todo o mundo (definido como aqueles que publicaram ao menos um artigo indexado) no período entre 1996 e 2011. Este núcleo, a quem Ioannidis denominou de Continuously Publishing Core tem em particular o fato de que publicaram ao menos um trabalho em cada ano no período de 16 anos analisados, sem falhar um único ano. Este seleto grupo de cientistas correspondem a apenas 1% do total, e possui presença ininterrupta e contínua na literatura (uninterrupted, continuous presence ou UCP).

Os autores da publicação salientam que mais importante do que publicar é publicar constante e continuamente, pois apenas assim estaria assegurada a efetiva contribuição para a ciência e o conhecimento, apesar de que importantes contribuições possam ser feitas em publicações isoladas. O artigo analisa a produção científica dos pesquisadores que formam o cerne da ciência nos seus aspectos bibliométricos, com o objetivo de melhor caracterizar esta população.

A fração de 150 mil pesquisadores que possui presença contínua na literatura – pesquisadores com UCP – e que representam 1% do total de pesquisadores ativos na base Scopus, constitui um núcleo bastante influente. O índice h² desta população é muito maior do que aqueles não UCP. Ao menos 75% daqueles com UCP possuem índice-h de 16, enquanto que este valor é atingido por apenas 0,96% daqueles pesquisadores sem UCP, e surpreendentemente, apenas 0,76% daqueles que deixaram de publicar em algum ano do período 1996 e 2011 (denominados “Skip”). Um quarto grupo, denominado “Skip-1” é formado por pesquisadores que teriam publicado continuamente nos 16 anos do período se não fosse por uma falha em um único ano entre 1997-2010. Destes, uma porção significativa, 43,7% tem índice h maior ou igual a 16.

Diferenças similares foram observadas entre os grupos no que diz respeito a número total de publicações e total de citações recebidas. A proporção de autores com média de ao menos 20 citações por artigo foi de 38,1% no grupo UCP, 10% naqueles não UCP, 10,3% nos Skip e 29,6% nos Skip-1. A diferença no número de citações em favor do grupo UCP é, em parte, devido ao fato que estes autores publicam mais artigos. Entretanto, mesmo contando a média de citações por artigo, autores com UCP tendem a maiores índices de citação quando o número de artigos por autor é maior do que 50. Abaixo deste número de artigos/autor, os grupos UCP e Skip-1 tem praticamente o mesmo número de citações. O comportamento semelhante destes grupos se observa também quando o número de publicações por autor excede 350 no período estudado.

A mediana do número total de artigos publicados é de 94, 1, 1 e 53 para os grupos UCP, não UCP, Skip, e Skip-1 respectivamente; a mediana do número total de citações é de 1536, 3, 3, e 712 para UCP, não UCP, Skip e Skip-1, respectivamente; e finalmente, a mediana do índice h é igual a 21, 1, 1, e 14 para UCP, não UCP, Skip e Skip-1, respectivamente.

Os autores realizaram então, uma análise de sensibilidade utilizando uma janela de dois anos ao invés de um ano, e o número de pesquisadores que qualificou para o grupo UCP aumentou três vezes, saltando para ao redor de 46 mil cientistas. Todavia, este novo grupo permanece qualitativamente diferente dos demais, assim como o grupo UCP com janela de um ano.

Cientistas que compõe o grupo UCP são autores de quase 42% das 25 milhões de publicações indexadas em Scopus entre 1996 e 2011. A presença de cientistas com UCP é ainda mais contundente entre as publicações altamente citadas, uma vez que este grupo participa como autor em 87% dos artigos que receberam mais de 1000 citações.

Os autores analisaram a proporção relativa de pesquisadores UCP nas diferentes disciplinas, e para isso, tomaram amostras randômicas de 10 mil cientistas por grupo de 13 áreas do conhecimento. Houve uma presença maior de autores UCP nas áreas de Medicina, Matemática/Física e Química, enquanto que a presença de autores não-UCP é maior em Ciências Sociais e Humanidades, Engenharia, e Ciências da Computação/Engenharia Elétrica.

Analogamente, foi feita uma análise da distribuição de autores UCP e não UCP por região geográfica. Existem predominantemente mais autores UCP na Europa, e em menor proporção na América do Norte, enquanto que o padrão não-UCP é mais predominante nas outras regiões do mundo. Como era esperado, encontram-se mais autores UCP na academia e setor governamental do que em setores como hospitalar e industrial. Nas análises de distribuição, o grupo Skip assemelhou-se ao grupo não-UCP, e o grupo Skip-1, em grande parte, tem comportamento análogo ao grupo UCP.

A observação de que 87% da produção científica mais citada na base Scopus concentra-se em apenas 1% de todos os pesquisadores da base é ainda mais impactante do que a observação derivada do Princípio de Pareto, segundo o qual oitenta por cento dos efeitos provém de 20% das causas, e que em cienciometria reza que 80% das citações provêm de 20% dos artigos. Já foi amplamente descrito na literatura que periódicos de renome concentram a maior parte dos artigos mais citados. Entretanto, o maior impacto de citações de autores UCP, que possuem um fluxo contínuo e ininterrupto de publicações ao longo de 16 anos, vai além da simples publicação de um maior número de artigos. O índice h dos autores UCP, que elimina o viés em seu cálculo, é significativamente maior do que no grupo não-UCP.

Apesar de indesejável do ponto de vista da carreira acadêmica, para muitos pesquisadores, entretanto, a interrupção no fluxo de publicação pode refletir situações pessoais ou familiares (a chegada de filhos, por exemplo) ou dificuldades em obter financiamento ou infraestrutura para a pesquisa. Por outro lado, em áreas como ciências humanas e sociais, onde a publicação de livros é a forma mais comum de produção científica, não faz sentido falar em UCP. O mesmo se aplica a instituições não acadêmicas como hospitais ou indústrias, onde a publicação não é o produto principal do trabalho dos profissionais, mas pode ocorrer concomitantemente.

Os autores do artigo alertam para o fato que a concentração de apenas 150 mil pesquisadores UCP no mundo é bastante rarefeita. Este número é ainda menor se considerarmos o universo de pesquisadores que tem mais de uma publicação por ano no período estudado. Menos da metade desta fração (68 mil cientistas) publicam ao menos dois artigos por ano em todos os anos; quase 40 mil publicam no mínimo três artigos, um décimo (15 mil) destes publicam cinco ou mais artigos e apenas 3 mil cientistas publicam dez ou mais artigos a cada e em todos os anos entre 1996 e 2011. Existem muitas equipes, departamentos ou instituições inteiras sem a presença de um pesquisador que integre o cerne da categoria. Os dados mostram que este número tende a crescer, mas ainda em ritmo bastante inferior ao crescimento do número total de pesquisadores. Além disso, o baixo número de autores-UCP pode refletir ineficiências do sistema acadêmico, de gestão de pessoal e política de contratações de jovens pesquisadores, ou ainda de concessão de auxílio à pesquisa. De qualquer forma, na opinião dos autores, é necessário manter aberto o debate, apoiado nos índices bibliométricos.

Notas

¹ Publish or perish – http://en.wikipedia.org/wiki/Publish_or_perish#cite_note-5

² HIRSCH, JE. An index to quantify an individual’s scientific research output. PNAS. 2005, vol. 102, nº 46, pp. 16569–16572. Available from: http://www.pnas.org/content/102/46/16569.full

Referências

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lilianSobre Lilian Nassi-Calò

Lilian Nassi-Calò é química pelo Instituto de Química da USP e doutora em Bioquímica pela mesma instituição, a seguir foi bolsista da Fundação Alexander von Humboldt em Wuerzburg, Alemanha. Após concluir seus estudos, foi docente e pesquisadora no IQ-USP. Trabalhou na iniciativa privada como química industrial e atualmente é Coordenadora de Comunicação Científica na BIREME/OPAS/OMS e colaboradora do SciELO.

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Lilian Nassi-Calò

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

NASSI-CALÒ, L. Perfil dos pesquisadores que integram o cerne da ciência mundial em publicações [online]. SciELO em Perspectiva, 2014 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2014/08/20/perfil-dos-pesquisadores-que-integram-o-cerne-da-ciencia-mundial-em-publicacoes/

 

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