Por Fabiano Couto Corrêa da Silva
Introdução

Imagem: jonakoh _ via Unsplash.
No centro dos debates contemporâneos sobre ciência aberta reside uma tensão fundamental que raramente é explicitada: como conciliar o ideal de um conhecimento científico global, acessível a todos, com a necessidade de soberania de dados, o direito de comunidades, instituições e nações de controlar os dados que produzem? Este dilema não é meramente técnico ou administrativo; ele toca no cerne das relações de poder que estruturam a ciência global. Existe um “trilema” entre abertura global, soberania digital e o risco do colonialismo de dados. Para pesquisadores do Sul Global, compreender e navegar este trilema é essencial para construir uma ciência verdadeiramente equitativa.O Trilema da Ciência Aberta: Abertura, Soberania e Colonialismo
O ideal da ciência aberta é sedutor: um bem público global, onde o conhecimento circula livremente através de fronteiras, acelerando descobertas e democratizando o acesso. A resposta científica à pandemia de COVID-19 demonstrou o poder dessa visão. O compartilhamento rápido e aberto de dados genômicos do vírus SARS-CoV-2 entre laboratórios de todo o mundo foi decisivo para o desenvolvimento acelerado de vacinas e tratamentos. Esse é o potencial transformador da colaboração sem fronteiras.
No entanto, essa visão otimista deve ser contrastada com a realidade geopolítica da infraestrutura digital que a sustenta. As plataformas de computação em nuvem, os repositórios de dados em larga escala e os algoritmos de inteligência artificial mais avançados são dominados por um pequeno número de corporações multinacionais (Big Techs), concentradas majoritariamente no Norte Global. Essa concentração de poder cria uma dependência estrutural problemática.
Quando pesquisadores do Sul Global depositam seus dados em repositórios controlados por empresas estrangeiras, quando utilizam plataformas de análise proprietárias, quando dependem de infraestruturas de nuvem sediadas em outros países, eles estão, de certa forma, cedendo soberania sobre um recurso estratégico. Esta dependência não é apenas técnica; ela é também política e epistemológica. Quem controla a infraestrutura controla, em última instância, as regras de acesso, as possibilidades de análise e até mesmo as formas de conhecimento que podem ser produzidas.
Extrativismo de Dados: uma Nova Face do Colonialismo
O conceito de extrativismo de dados, inspirado na crítica pós-colonial ao extrativismo econômico, descreve práticas onde pesquisadores e instituições com maior poder econômico e simbólico extraem dados, amostras e conhecimentos de contextos locais sem estabelecer relações genuinamente recíprocas com as comunidades e pesquisadores que tornam essa extração possível.
Este fenômeno é particularmente problemático em áreas como saúde global, estudos ambientais e pesquisa social, onde o conhecimento local e o acesso a contextos específicos são fundamentais para a qualidade da pesquisa. Dados sobre doenças tropicais, biodiversidade amazônica, práticas agrícolas tradicionais ou dinâmicas sociais em comunidades vulneráveis são coletados por pesquisadores do Norte, analisados com ferramentas sofisticadas, publicados em revistas de alto impacto e, frequentemente, os benefícios, tanto em termos de reconhecimento acadêmico quanto de aplicações práticas, não retornam às comunidades de origem.
O extrativismo de dados não se limita à apropriação de recursos materiais. Ele inclui também a apropriação de conhecimentos tradicionais, saberes locais e perspectivas culturais que são posteriormente recontextualizados e reinterpretados segundo marcos teóricos e metodológicos dominantes, frequentemente apagando as contribuições intelectuais das comunidades locais.
Soberania de Dados: Princípios e Práticas
A soberania de dados científicos não significa isolamento ou fechamento. Trata-se de garantir que as comunidades que geram dados mantenham o controle sobre como esses dados são usados, por quem e para quais fins. Isto implica:
- Infraestruturas Locais e Regionais
Investimento em repositórios de dados, plataformas de análise e capacidades computacionais locais e regionais. Iniciativas como o SciELO Data, repositórios nacionais de dados de pesquisa e redes regionais de computação científica são exemplos de esforços para reduzir a dependência de infraestruturas estrangeiras.
- Governança Participativa
Desenvolvimento de modelos de governança onde pesquisadores, instituições e, quando apropriado, comunidades afetadas pela pesquisa, participam das decisões sobre acesso, uso e compartilhamento de dados. Isto é particularmente importante em pesquisas envolvendo populações indígenas, comunidades tradicionais ou grupos vulneráveis.
- Protocolos de Compartilhamento Equitativo
Criação de protocolos que garantam que o compartilhamento de dados seja acompanhado de compartilhamento de benefícios, incluindo coautoria, capacitação, transferência de tecnologia e retorno de resultados às comunidades de origem.
- Marcos Legais e Políticos
Desenvolvimento de legislações e políticas nacionais e regionais que protejam a soberania de dados, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil e regulamentações similares em outros países da América Latina.
Princípios CARE: uma Alternativa aos Princípios FAIR
Enquanto os princípios FAIR (Findable, Accessible, Interoperable, Reusable; encontráveis, acessíveis, interoperáveis e reutilizáveis) focam na gestão técnica de dados, os princípios CARE (Collective Benefit, Authority to Control, Responsibility, Ethics; Benefício coletivo, Autoridade para controlar, Responsabilidade. Ética)1, desenvolvidos por comunidades indígenas, centram-se na governança de dados de uma perspectiva de justiça e equidade.
Os princípios CARE reconhecem que dados, especialmente aqueles relacionados a povos indígenas e comunidades tradicionais, não são apenas recursos técnicos, mas estão intrinsecamente ligados a direitos coletivos, identidades culturais e soberanias. Eles propõem que:
- Benefício Coletivo: Os dados devem ser usados de formas que beneficiem as comunidades que os geraram.
- Autoridade para Controlar: As comunidades têm o direito de governar a coleta, propriedade e aplicação de seus dados.
- Responsabilidade: Aqueles que trabalham com dados têm a responsabilidade de promover o bem-estar das comunidades.
- Ética: Os direitos e o bem-estar das pessoas devem ser a preocupação primária em todas as etapas do ciclo de vida dos dados.
A integração dos princípios CARE com os princípios FAIR representa um caminho para uma ciência aberta que seja também justa e respeitosa das soberanias locais.
Modelos de Colaboração Equitativa: Superando o Extrativismo
A superação do extrativismo de dados requer o desenvolvimento de novos modelos de colaboração baseados em princípios de reciprocidade, transparência e empoderamento mútuo. Estes modelos devem ir além da simples inclusão de pesquisadores do Sul Global em projetos concebidos e liderados no Norte, para promover formas genuínas de co-criação onde as agendas de pesquisa, as metodologias empregadas e os marcos interpretativos são desenvolvidos colaborativamente desde o início do processo.
A capacitação mútua emerge como elemento central de qualquer modelo genuinamente equitativo de colaboração científica. Diferentemente dos modelos tradicionais de “transferência de tecnologia”, que pressupõem um fluxo unidirecional de conhecimento do Norte para o Sul, a capacitação mútua reconhece que todos os parceiros têm conhecimentos e competências valiosas a compartilhar.
Exemplos de práticas equitativas incluem:
- Co-design de projetos de pesquisa desde a fase de concepção
- Compartilhamento de recursos (financeiros, tecnológicos, humanos)
- Publicação conjunta com autoria equitativa
- Retorno de resultados às comunidades de forma acessível e culturalmente apropriada
- Desenvolvimento de capacidades locais de análise e interpretação de dados
Conclusão: Construindo uma Ciência Aberta Soberana
A soberania de dados científicos não é uma barreira à ciência aberta, mas uma condição para sua realização plena e justa. Uma ciência verdadeiramente aberta é aquela que respeita a autonomia das comunidades que geram conhecimento, que promove a equidade no acesso não apenas aos dados, mas também às capacidades de processá-los e interpretá-los, e que reconhece a diversidade de epistemologias e formas de saber.
Para o Sul Global e para a comunidade científica comprometida com a equidade, a construção de infraestruturas soberanas, o desenvolvimento de marcos de governança participativa e a promoção de colaborações equitativas são passos essenciais para garantir que a ciência aberta não se torne um novo veículo de colonialismo, mas sim uma ferramenta de emancipação e justiça cognitiva. A questão “Quem controla seus dados?“2 é, no fundo, uma questão sobre quem tem o poder de definir o futuro da ciência e do conhecimento. E a resposta deve ser: todos nós, em condições de igualdade e respeito mútuo.
Posts da série sobre o livro Quem controla seus dados?
- Colonialismo de Dados na Ciência: uma Nova forma de dominação epistêmica
- Ciência Aberta entre Promessas e Paradoxos, democratização ou nova dependência?
- Integridade Científica na era da IA: fraudes, manipulação e os novos desafios da transparência
- Soberania de Dados Científicos nas tensões entre a Abertura Global e a Autonomia Local
Notas
1. CARROLL, S.R., et al. The CARE Principles for Indigenous Data Governance. Data Science Journal, 2020, vol. 19, no. 1 [viewed 17 December 2025] https://doi.org/10.5334/dsj-2020-043. Available from: https://datascience.codata.org/articles/dsj-2020-043↩
2. SILVA, F.C.C. Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data. São Paulo: Pimenta Cultural, 2025 [viewed 17 December 2025]. https://doi.org/10.31560/pimentacultural/978-85-7221-474-2. Available from: https://www.pimentacultural.com/livro/quem-controla-dados/↩
Referências
CARROLL, S.R., et al. The CARE Principles for Indigenous Data Governance. Data Science Journal, 2020, vol. 19, no. 1 [viewed 17 December 2025] https://doi.org/10.5334/dsj-2020-043. Available from: https://datascience.codata.org/articles/dsj-2020-043
SILVA, F.C.C. Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data. São Paulo: Pimenta Cultural, 2025 [viewed 17 December 2025]. https://doi.org/10.31560/pimentacultural/978-85-7221-474-2. Available from: https://www.pimentacultural.com/livro/quem-controla-dados/
Sobre Fabiano Couto Corrêa da Silva
Fabiano Couto Corrêa da Silva é pesquisador em Ciência da Informação, com foco em Ciência Aberta, colonialismo de dados e soberania informacional. Atua na intersecção entre estudos pós-coloniais, teoria crítica da informação e governança de dados. É autor do livro Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data (Pimenta Cultural, 2025). Seus trabalhos examinam assimetrias de poder na comunicação científica e propõem caminhos para uma ciência mais justa e democrática. Lidera o DataLab – Laboratório de Dados, Métricas Institucionais e Reprodutibilidade Científica, com ênfase em FAIR/CARE.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
















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