Por Fabiano Couto Corrêa da Silva
Introdução

Imagem: Sara Varasteh via Unsplash.
O movimento pela Ciência Aberta emergiu como uma das mais promissoras respostas aos desafios de acesso e equidade na produção de conhecimento. Com a promessa de democratizar a ciência, tornando-a mais transparente, colaborativa e acessível a todos, a ciência aberta ganhou força em todo o mundo, impulsionando a criação de repositórios, o acesso aberto a publicações e a partilha de dados de pesquisa.
No entanto, como explorado no segundo capítulo do e-book Quem Controla Seus Dados?1, este ideal nobre não está isento de tensões e paradoxos. A grande questão que se impõe é: a ciência aberta está, de fato, a construir um ecossistema científico mais justo ou corre o risco de, inadvertidamente, criar novas formas de dependência e aprofundar desigualdades existentes? Para a comunidade SciELO e para o Sul Global, esta é uma reflexão crítica e essencial.
Os Princípios FAIR e a Promessa Democrática
No coração da Ciência Aberta estão os princípios FAIR (Findable, Accessible, Interoperable, Reusable; encontráveis, acessíveis, interoperáveis e reutilizáveis), que visam garantir que os dados de pesquisa possam ser encontrados, acessados, interoperáveis e reutilizados. A ideia é que, ao tornar os dados abertos, outros pesquisadores possam validá-los, replicar estudos e criar novos conhecimentos a partir de investigações anteriores. A retórica da democratização é poderosa: em teoria, qualquer pessoa, em qualquer lugar, poderia aceder aos mais recentes dados científicos e contribuir para o avanço do conhecimento.
Contudo, a prática revela uma realidade mais complexa. A simples disponibilização dos dados não garante a sua utilização equitativa. A capacidade de processar e analisar grandes volumes de dados (Big Data) exige infraestruturas computacionais robustas, softwares especializados e competências analíticas avançadas, recursos que permanecem desigualmente distribuídos a nível global. O acesso aberto a publicações, embora seja um avanço inegável, também enfrenta desafios de sustentabilidade, com modelos de financiamento como os APCs (Article Processing Charges, taxas de processamento de artigos) que criam barreiras financeiras para pesquisadores de instituições com menos recursos.
Os Paradoxos da abertura
A implementação da Ciência Aberta revela uma série de paradoxos que precisam ser enfrentados:
- Dados Abertos, capacidade desigual: A abertura dos dados pode, paradoxalmente, beneficiar mais aqueles que já detêm poder. Corporações de tecnologia e instituições de pesquisa do Norte Global, com a sua imensa capacidade computacional, estão mais bem posicionadas para extrair valor de dados abertos gerados em todo o mundo, incluindo dados de biodiversidade, saúde e sociais do Sul Global. Isto cria uma dinâmica onde o Sul fornece a matéria-prima (dados) e o Norte controla os meios de produção de conhecimento a partir dela.
- Algoritmos e Curadoria: o poder invisível da descoberta: Num oceano de dados e publicações abertas, como a informação relevante é descoberta? A resposta está nos algoritmos de busca e nas plataformas de curadoria. Estes sistemas, majoritariamente controlados por empresas comerciais, tornam-se os novos “gatekeepers” do conhecimento. As suas lógicas de classificação e recomendação, muitas vezes opacas, determinam o que é visível e o que permanece invisível, moldando a agenda de pesquisa de formas sutis mas poderosas.
- Tensão entre Abertura e Controle: A ciência aberta coexiste com um sistema de avaliação científica que ainda valoriza métricas tradicionais e a publicação em revistas de “alto impacto”, muitas das quais operam em modelos de negócio fechados ou dispendiosos. Os pesquisadores encontram-se assim numa encruzilhada, pressionados a partilhar os seus dados, mas também a publicar em locais que lhes garantam prestígio e progressão na carreira.
Ciência Cidadã e as resistências à hegemonia
Em resposta a estes desafios, emergem movimentos que procuram construir uma ciência aberta mais equitativa e participativa. A ciência cidadã, que envolve o público na coleta e análise de dados, tem o potencial de democratizar não apenas o acesso, mas a própria prática científica. No entanto, é crucial questionar quem participa e em que termos, para evitar que a ciência cidadã se torne apenas uma forma de extrair dados de comunidades sem um envolvimento genuíno.
Existem também importantes movimentos de resistência à ciência aberta hegemônica, que defendem a soberania dos dados e o direito das comunidades a controlar a forma como as suas informações são utilizadas. Iniciativas de repositórios locais, plataformas de publicação não comerciais e a defesa de protocolos de dados que respeitem os conhecimentos tradicionais são exemplos de uma luta por uma ciência aberta que seja verdadeiramente descolonizada.
Conclusão: Por uma Ciência Aberta Crítica e Contextualizada
A ciência aberta não é uma solução mágica, mas um campo de disputas e possibilidades. A sua promessa de democratização só poderá ser realizada se enfrentarmos os seus paradoxos de frente. Isto exige mais do que a simples abertura de dados; exige a construção de capacidades locais, o desenvolvimento de infraestruturas soberanas e a promoção de políticas que garantam uma participação equitativa na governação do ecossistema científico.
É fundamental que a comunidade científica, especialmente no contexto latino-americano e do Sul Global, assuma um papel ativo na definição dos termos da abertura, garantindo que ela sirva aos interesses da democratização do conhecimento e não à reprodução de desigualdades. A ciência aberta que precisamos é aquela que reconhece e valoriza a diversidade epistemológica, promove a justiça cognitiva e constrói pontes, não muros, entre diferentes formas de saber.
Posts da série sobre o livro Quem controla seus dados?
- Colonialismo de Dados na Ciência: uma Nova forma de dominação epistêmica
- Ciência Aberta entre Promessas e Paradoxos, democratização ou nova dependência?
- Integridade Científica na era da IA: fraudes, manipulação e os novos desafios da transparência
- Soberania de Dados Científicos nas tensões entre a Abertura Global e a Autonomia Local
Nota
1. SILVA, F.C.C. Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data. São Paulo: Pimenta Cultural, 2025 [viewed 05 November 2025]. https://doi.org/10.31560/pimentacultural/978-85-7221-474-2. Available from: https://www.pimentacultural.com/livro/quem-controla-dados/ ↩
Referências
SILVA, F.C.C. Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data. São Paulo: Pimenta Cultural, 2025 [viewed 05 November 2025]. https://doi.org/10.31560/pimentacultural/978-85-7221-474-2. Available from: https://www.pimentacultural.com/livro/quem-controla-dados/
Sobre Fabiano Couto Corrêa da Silva
Fabiano Couto Corrêa da Silva é pesquisador em Ciência da Informação, com foco em Ciência Aberta, colonialismo de dados e soberania informacional. Atua na intersecção entre estudos pós-coloniais, teoria crítica da informação e governança de dados. É autor do livro Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data (Pimenta Cultural, 2025). Seus trabalhos examinam assimetrias de poder na comunicação científica e propõem caminhos para uma ciência mais justa e democrática. Lidera o DataLab – Laboratório de Dados, Métricas Institucionais e Reprodutibilidade Científica, com ênfase em FAIR/CARE.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
















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