Renata Demian Meinel, Pós-graduanda do Mestrado Profissional em Educação, Gestão e Difusão em Biociências (MP-EGeD) do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis (IBqM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Anna Carolina Braga de Lopes, Pós-graduanda do MP-EGeD do IBqM da UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Raquel Cristina Vieira Spetseris, Pós-graduanda do MP-EGeD do IBqM da UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Sonia Maria Ramos de Vasconcelos, Responsável pela disciplina de Metodologia de Pesquisa do MP-EGeD e Professora associada do IBqM da UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Imagem: Daniel McCullough via Unsplash
Quando pensamos em ciência é comum associá-la à geração de novos conhecimentos e do meio pelo qual temos uma melhor compreensão do mundo natural e social. Dada a importância do relato científico para os pares, para embasar as pesquisas nas mais diversas áreas e, para a sociedade, de forma ampla, a transparência nesse relato é condição sine qua non para a confiabilidade da atividade científica, mundo afora. Em Enhancing Scientific Reproducibility in Biomedical Research Through Transparent Reporting,1 as National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine (2020) dos Estados Unidos apresentam “[a]bordagens para cultivar relatos transparentes na pesquisa biomédica.”
A ideia de relato transparente está fortemente associada à integridade científica e independe da área. Nas palavras de Richard Feynman (1918-1988), “é um tipo de integridade científica, um princípio do pensamento científico que corresponde a uma espécie de honestidade absoluta — uma espécie de ‘leaning over backwards‘…”2 (Feynman, 1974). O autor associa essa honestidade absoluta em um relato científico à exposição de “todas as informações para que seja permitido o julgamento adequado do valor da sua contribuição; não apenas as informações que levam o julgamento a uma direção específica.”2
As noções de integridade científica vêm se aprofundando com o tempo, acompanhando as transformações tanto da atividade científica quanto do próprio conceito de conduta responsável em pesquisa (Steneck, 2006; Resnik, 2011; Vasconcelos & Marušić, 2025).
A falta de transparência e/ou a omissão de dados/informações essenciais para a compreensão de um trabalho científico ganharam atenção destacada nesse contexto, pelo impacto direto na qualidade do registro da pesquisa. A ausência de informações pode impactar a replicação de experimentos por outros pesquisadores, bem como a compreensão da relevância, possíveis aplicações e limitações dos estudos.
Relatos científicos que omitem erros ou inconsistências podem dificultar a identificação desses aspectos por terceiros e, em áreas como a pesquisa em saúde, contribuir para os desafios existentes nas publicações desse campo.
Discutindo a a transparência no relato na pesquisa em saúde, Altman & Moher, em Importance of Transparent Reporting of Health Research3 (2014) alertavam, há mais de uma década, sobre deficiências na aderência da literatura científica a padrões rigorosos de relato sobre metodologias e resultados, indicando que revisões sistemáticas vinham tendo um papel central na exposição dessas falhas no campo da saúde.
O problema inclui ensaios controlados randomizados, de cujos relatos estão ausentes informações consideradas cruciais para os leitores. Iniciativas como a STROBE (STrengthening the Reporting of OBservational studies in Epidemiology) Subsídios para a comunicação de estudos observacionais) vêm contribuindo para uma explicitação mais clara, por exemplo, de estudos observacionais.
Essa iniciativa se justifica pela preocupação de que relatos científicos incompletos e inadequados dificultam a avaliação dos pontos fortes e fracos dos estudos, bem como a generalização dos achados (Vandenbroucke, et al., 2007). O STROBE apresenta, para cada seção do artigo, recomendações específicas. Na seção de Discussão, recomenda-se que os autores apresentem uma análise objetiva dos resultados, evitando interpretações exageradas. Também se deve relatar as limitações do estudo e possíveis vieses envolvidos no trabalho.
No âmbito da pesquisa qualitativa social, Moravcsik (2014), em The Transparency Revolution in Qualitative Social Science,4 esclarece que os cientistas sociais qualitativos vêm estabelecendo normas mais rigorosas para aprimorar a transparência nesse tipo de pesquisa. A transparência é um requisito básico para avaliar a qualidade do trabalho, mas seu papel vai muito além desse aspecto. Sem transparência há pouca motivação para adquirir novas habilidades e coletar evidências mais robustas.
Como observa o autor
[n]a pesquisa social, as evidências não falam por si, mas são analisadas para inferir características não observáveis — como preferências, identidades, crenças, racionalidade, poder, intenção estratégica e causalidade. Para que os leitores entendam e se envolvam com a pesquisa, eles devem ser capazes de avaliar como o autor pretende conceituar e mensurar o comportamento, extrair inferências descritivas e causais dessas medidas, determinar se os resultados são conclusivos em relação a alternativas e especificar implicações mais amplas.4
Moravcsik (2014)4 cita a APSA (American Political Science Association):
[a]s comunidades acadêmicas nas ciências sociais, ciências naturais e humanidades baseadas em evidências só podem existir se seus membros compartilharem abertamente evidências, resultados e argumentos. A transparência permite que essas comunidades reconheçam quando a pesquisa foi conduzida com rigor…”4
Para Harvey Fineberg, em Enhancing Scientific Reproducibility in Biomedical Research Through Transparent Reporting: Proceedings of a Workshop,1 então presidente da Gordon and Betty Moore Foundation, na ciência da computação, “[u]m desafio para a reprodutibilidade computacional, que permeia diferentes áreas científicas, é que muitos relatos de estudos não incluem informações suficientes para permitir que outro pesquisador reproduza os resultados computacionais originalmente gerados” (National Academies, 2019).5 Grant, et al.6 (2022) relacionam essa crescente atenção ao relato, fortalecido por maior “transparência, abertura e reprodutibilidade” a ideais científicos fundamentais, como comunalidade, universalismo, desinteresse e ceticismo organizado, propostos por Robert K. Merton (1910-2003) (1973).
Esses imperativos institucionais vêm sendo desafiados ao longo do tempo, uma vez que a atividade científica se tornou muito mais complexa e articulada com um ecossistema de pesquisa que confrontam aspectos como desinteresse e ceticismo organizado (Hodson, 2011). Como descrevem os mesmos autores, práticas de ciência aberta permitem que os pesquisadores verifiquem melhor o trabalho de seus pares, o que intensifica a própria autocorreção e autorregulação da ciência.
Transparência e “o artigo de pesquisa oculto”
No que tange o sistema de publicações, há uma rede de colaborações que naturalmente se estabelece, entre autores, editores e revisores, promovendo uma interação crucial para o progresso da ciência. Essa interação reúne uma articulação complexa e plural, com indivíduos que têm diferentes experiências, motivações, personalidades e, não raro, diferentes tipos de cultura no âmbito de suas áreas ou subáreas de pesquisa.
Se, por um lado, essas particularidades enriquecem o processo de comunicação científica, por outro, podem gerar discordâncias sobre os resultados, suas interpretações, relevância alegada pelos autores, bem como as conclusões dos trabalhos.
Mas “o que acontece quando cientistas discordam?” Há mais de duas décadas, Richard Horton, editor de um dos periódicos médicos de maior visibilidade, o The Lancet, fez essa provocação, em seu The Hidden Research Paper.7 Sua resposta foi que “[a] maioria dos leitores de artigos científicos nunca fica sabendo.”
Para um aprofundamento nessas reflexões, Horton (2002)7 realizou um estudo qualitativo baseado em um conjunto de dez artigos de pesquisa publicados no referido periódico. Dentre os problemas identificados por meio da pesquisa, o estudo lançou luz sobre como opiniões expressas em um artigo de pesquisa podem não ser, necessariamente, representações de todos os seus colaboradores.
O autor, além de criticar nos artigos avaliados a exposição de resultados de forma superficial, sem um comprometimento claro com achados anteriores, discutiu questões sistêmicas amplas que afetavam (e continuam afetando) a publicação da pesquisa científica.
Em sua avaliação do conjunto de artigos, identificou que “a diversidade de opinião dos colaboradores foi comumente excluída do relato da pesquisa que foi publicado… Eu achei que as seções de discussão eram organizadas de forma aleatória e não lidavam sistematicamente com questões importantes sobre o estudo.”7
A ideia do “artigo oculto” se reflete na consideração de que “[u]m artigo de pesquisa raramente representa as opiniões de todos os cientistas envolvidos no trabalho…”7 e que seu estudo revelou que há “evidências de críticas (auto)censuradas, significados obscuros, avaliações confusas sobre implicações da pesquisa e falhas em indicar direções futuras…”7
Em sua reflexão, Horton (2002) acrescenta que
o artigo é elaborado para persuadir ou, pelo menos, apresentar uma perspectiva particular. Quando se investiga além da superfície do relato publicado, descobre-se um artigo de pesquisa oculto que revela a verdadeira diversidade de opiniões entre os colaboradores sobre o significado de seus resultados de pesquisa.7
Uma pergunta retórica é qual rumo uma publicação acaba tomando quando diferentes pontos de vista — que deveriam enriquecer as informações relatadas — surgem, mas nem sempre são incorporados no relato final (quando poderiam ou deveriam)?
Transparência no relato: um desafio que merece atenção redobrada
Na pesquisa de Horton (2002)7 foram identificadas opiniões discordantes entre os colaboradores e outras informações de interesse que são geralmente excluídas da publicação. O artigo nos leva aos bastidores do mundo da pesquisa científica, destacando complexos debates que ficam por trás das cortinas apenas e não se refletem no relato. Afinal, “quem determina o que está escrito e por quê?”
Ao abordar uma divergência em um relato associado ao Italian Multicentre Acute Stroke Trial, Horton (2002)7 observou que ficou evidente durante a revisão por pares que dois membros do comitê divergiram com seus colegas sobre as interpretações dos resultados dos estudos clínicos. O autor identificou a presença de um tipo de autocensura entre determinados membros, a qual teria sido justificada, em sua análise, pelo interesse do bem coletivo representado pela colaboração.
Questões pertinentes que podem ser consideradas incluem: O objetivo da pesquisa limita-se à publicação de resultados? Consiste em evitar possíveis desconfortos? Visa apresentar consensos artificiais? Ou busca revelar integralmente as ideias, opiniões, diversidade e riqueza de informações dos pesquisadores participantes do estudo?
Na prática, é bastante desafiador discernir se as conclusões publicadas refletem de fato um consenso genuíno ou se interpretações divergentes foram omitidas ou até mesmo censuradas. No entanto, tal ambiguidade não constitui necessariamente uma falha, nem compromete a validade dos achados descritos em um artigo científico.
O fato é que determinar a melhor forma de lidar com divergências entre autores e colaboradores para aprimorar a transparência e a robustez dos relatos da pesquisa continua sendo um desafio complexo e contínuo. Trata-se de um processo em evolução, de aprendizado e refinamento institucional, moldado, em parte, pelos esforços contínuos dos pesquisadores para aprimorar suas práticas de comunicação, tanto entre pares quanto com públicos mais amplos (OECD, 2023).
Relato científico e pesquisa qualitativa: análise e apresentação dos resultados
A metáfora de Horton sobre o “artigo oculto”7 (2002) nos convida a estender nossa leitura para diferentes abordagens da pesquisa científica e trazer uma reflexão sobre algumas peculiaridades na pesquisa qualitativa. Em Transparency in Qualitative Research,8 Moravcsik (2019) discute a transparência na pesquisa qualitativa em contraste com a quantitativa.
Na pesquisa quantitativa, transparência e reprodutibilidade são frequentemente destacadas como essenciais, refletindo-se no rigor obtido por meio da clareza metodológica e da explicitação do tratamento e da interpretação dos dados, sendo parte dos elementos que permitem a replicação dos estudos por outros pesquisadores.
No contexto qualitativo, contudo, o rigor não se limita à descrição detalhada dos procedimentos. Ele envolve também a reflexividade, isto é, a autoanálise crítica dos pesquisadores sobre o modo como suas próprias perspectivas e decisões metodológicas influenciam o processo e o relato da pesquisa (Olmos-Veja, et al., 2022).
Nesse sentido, Moravcsik (2019) esclarece que
[c]ientistas sociais que desenvolvem estudos estatísticos e experimentais normalmente alcançam transparência de dados principalmente ao arquivar um conjunto de dados em repositórios digitais… pode parecer que os pesquisadores qualitativos devam fazer o mesmo..Porém, ainda que o arquivamento de dados seja frequentemente útil, é arriscado concluir que essa prática pode operar (como ocorre em trabalhos estatísticos) como uma estratégia básica e viável de transparência para pesquisadores qualitativos. Essa analogia inadequada com a pesquisa quantitativa contribuiu para muitas críticas equivocadas à transparência qualitativa… o arquivamento de dados é, na melhor das hipóteses, uma solução parcial, adequada apenas a um subconjunto restrito de pesquisas qualitativas.8
Dessa forma, o arquivamento de dados pode ser um instrumento eficaz, de transparência, apenas em um número limitado de casos em que não haja grandes restrições relativas aos participantes de pesquisa e à propriedade intelectual, o corpo subjacente de dados (por exemplo, um conjunto discreto de entrevistas, anotações de campo ou documentos) esteja claramente definido e logisticamente gerenciável, com a transparência analítica e de processo também fornecida.
O artigo de Moravcsik (2019)8 oferece uma abordagem crítica à questão da transparência na pesquisa qualitativa. Ele analisa os desafios específicos enfrentados por uma comunidade heterogênea de pesquisadores qualitativos em áreas sociais, e chama a atenção para alguns pontos sensíveis.
Como o autor descreve em suas considerações,
simplesmente divulgar integralmente os dados utilizados pelo autor frequentemente não é viável e nem desejável. Há restrições rigorosas quanto às evidências que podem tornar transparentes (e que os leitores conseguem processar), respeitando limites éticos, legais e de viabilidade logística para o gerenciamento dessas informações. É comum que pesquisadores assumam o compromisso ético de proteger participantes vulneráveis presentes em entrevistas e registros de campo e documentos, por meio da anonimização ou confidencialidade total das fontes. Há consenso nos debates sobre transparência qualitativa de que tais imperativos devem prevalecer sobre o princípio da transparência.8
De fato, a ênfase excessiva na transparência em alguns estudos de cunho social ou comportamental pode comprometer a privacidade dos participantes de pesquisa ou levar à simplificação excessiva de processos complexos de pesquisa. Para Steltenpohl, em Rethinking Transparency and Rigor from a Qualitative Open Science Perspective9 (2023) sobre o compartilhamento público de dados da pesquisa qualitativa, deve haver um trade-off entre transparência e privacidade. Os autores chamam atenção para o papel de “graded sharing access to the data“, trazendo como exemplo o manejo e uso de dados disponibilizados no Qualitative Data Repository (QDR), com diferentes categorias de acesso, que impõem restrições em alguns casos. Como descrevem os autores
implementar diferentes níveis de acesso aos dados por parte dos pesquisadores possibilita a conformidade com os princípios da ciência aberta, ao mesmo tempo em que preserva o anonimato dos participantes. Esse equilíbrio é especialmente relevante no manejo de informações sensíveis e em contextos organizacionais pautados pela confidencialidade, como agências governamentais e parceiros do setor industrial.9
Consistente com esse cuidado, Moravcsik (2019)8 argumenta que é importante equilibrar a transparência com outras considerações éticas e metodológicas ao conduzir pesquisas qualitativas. Como salientam Kapiszewski & Karcher (2020) em Transparency in Practice in Qualitative Research10
“transparência” não é uma questão de tudo ou nada: a maioria dos trabalhos não se apresenta completamente opaca nem totalmente transparente, mas situa-se em algum ponto intermediário. De fato, é importante lembrar que a transparência é um meio para um fim, e não um fim em si mesma.10
O relato da pesquisa qualitativa e a desejabilidade social
Brenner e DeLamater (2016), em Lies, Damned Lies, and Survey Self-Reports? Identity as a Cause of Measurement Bias,11 destacam a importância de abordar o viés de desejabilidade social, uma tendência de indivíduos relatarem atitudes ou comportamentos que não correspondem às suas experiências reais, com seus autorrelatos moldados pelo que percebem ser socialmente aceitável ou esperado em seu ambiente. Reforçando a necessidade de que, ao conceber instrumentos e metodologias de pesquisa, é fundamental incluir estratégias que ajudem a mitigar esse viés.
A desejabilidade social é frequentemente atribuída ao método utilizado para coletar respostas, como pesquisas administradas pelos pesquisadores comparadas a formatos online, em surveys anônimas. Embora haja respaldo na literatura para essa associação (Rickwood & Coleman-Rose, 2023), Brenner e DeLamater (2016)11 desafiam o pressuposto de que o modo de responder é o principal fator de desejabilidade social. Baseiam-se na teoria da identidade social para explicar como indivíduos adotam as normas dos grupos sociais aos quais afiliam-se. Nesse processo incluem-se suas regras informais e como essas normas influenciam a forma como os indivíduos (respondentes em pesquisas, por exemplo) podem se apresentar de modo a alinhar-se às expectativas (Raphbone, et al., 2023).
Essas identidades influenciam não apenas o que é sub ou super-relatado, mas também como os respondentes compreendem as perguntas. Dito isso, os pesquisadores devem examinar cuidadosamente se o desenho dos instrumentos ou as abordagens de entrevista podem, inadvertidamente, induzir os participantes de pesquisa a responderem de maneira alinhada ao comportamento normativo que percebem como mais ou menos adequado. Entretanto, há muitas perguntas em aberto sobre a melhor forma de abordar e reduzir esse tipo de viés (Brenner e DeLamater, 201611).
De forma geral, podemos considerar a desejabilidade social como um desafio intrínseco à pesquisa qualitativa. Esse fenômeno aparece frequentemente nas interações entre pesquisadores e participantes, podendo influenciar como as informações são compartilhadas. A natureza subjetiva da pesquisa qualitativa, que busca compreender profundamente as experiências e percepções dos indivíduos, faz da desejabilidade social uma fonte de viés a ser considerada no relato dos achados e na análise da pesquisa.
Um outro aspecto relevante é reconhecer que os mesmos constructos podem ser interpretados de maneira distinta em diferentes contextos sociais, o que apresenta desafios ao tentar comparar ou replicar resultados na pesquisa qualitativa. Nesse tipo de pesquisa, onde o objetivo geralmente é alcançar nuances do problema estudado e uma compreensão contextualizada, as entrevistas são o método mais comumente utilizado para coleta de dados (Bastos, et al., 2021; Barros & Vasconcelos, 2024). Nesse sentido, os pesquisadores devem ter um cuidado extra para antecipar, minimizar e relatar adequadamente os efeitos do viés de desejabilidade social.
Na pesquisa com pessoas também é crucial considerar potenciais vieses não apenas dos participantes, mas também dos próprios pesquisadores. Ambos podem influenciar a geração e a interpretação dos dados e devem ser tratados como fontes essenciais de análise reflexiva (Olmos-Vega, et al., 2022).
Uma cultura em evolução: a importância de discutir o relato da pesquisa científica na pós-graduação
O cenário exposto nesta breve comunicação levanta alguns dos aspectos que permeiam transformações no âmbito da comunicação e avaliação da qualidade e confiabilidade da pesquisa. Ele também sinaliza que há um longo caminho a percorrer quando se trata de transparência e mitigação de vieses no relato científico, considerando a complexidade da cultura de pesquisa e como ela se reflete em práticas em publicações, nas diferentes áreas.
Debates e ações acerca desse tema devem ser incentivados nos vários estágios de formação acadêmica, com um espaço maior para crítica e autocrítica em colaborações científicas sobre o rigor na elaboração do relato da pesquisa. O documento das National Academies que citamos2 (National Academiesof Sciences, Engineering, and Medicine, 2020) neste argumento destaca a necessidade de diretrizes claras e abrangentes para um relato científico mais completo.
Culturas de pesquisa e publicações não se transformam abruptamente (Casci & Adams, 2019; Canti, et al., 2021) e há uma responsabilidade partilhada na academia para promover uma maior transparência no relato da pesquisa em publicações — exercer essa responsabilidade partilhada é parte dessa transformação. A adesão a diretrizes e políticas editoriais é apenas um dos elementos que podem fortalecer a transparência e a confiabilidade do relato científico.
Aspectos da cultura de pesquisa que desincentivam a exposição de erros, fragilidades da pesquisa, que incluem relutância sobre a exposição de suas limitações (de qualquer natureza), são fontes de preocupação e merecem atenção redobrada de pesquisadores jovens e experientes.
Em Promoting an Open Research Culture,12 Nosek, et al. (2015), que ecoam estudos e iniciativas sobre reprodutibilidade científica (Amaral & Neves, 2021), argumentam que “[t]ransparência, abertura e reprodutibilidade são prontamente reconhecidas como características vitais da ciência”12 e que “quando perguntados, a maioria dos cientistas adota essas características como normas e valores em suas áreas.”12 Nesse sentido, Nosek, et al.12 (2015) indicam que essa valorização seria refletida nas práticas científicas, rotineiramente, mas “as evidências, cada vez maiores, sugerem que o cenário é diferente.”12
Revisitando Horton,7 a pergunta “[q]uem determina o que é escrito e por quê?” não podia ser mais relevante neste momento de grande produção intelectual auxiliada pela Inteligência Artificial Generativa (IA Gen). Acreditamos que pesquisadores recém-ingressos na academia, em especial discentes da pós-graduação, como nós (as três primeiras autoras), devem ser estimulados a uma maior exposição à discussão sobre a responsabilidade autoral sobre o relato científico, com a crescente demanda por maior transparência.
Disciplinas de Comunicação Científica e/ou Metodologia da Pesquisa, por exemplo, abrem um espaço oportuno para essa exposição, como tivemos. Pensar sobre estratégias para aprimorar a transparência do relato científico nos leva a pensar criticamente sobre a própria pesquisa, antes mesmo de expor o trabalho para uma avaliação no sistema de publicações científicas.
Esse exercício é ainda mais necessário em um ambiente em que a IA Gen, cada vez mais presente na atividade de pesquisa, pode ser usada para automatizar ou mesmo delinear relatos e produzir conclusões que nem mesmo os autores podem ter considerado. Esse exercício cultiva a agência e supervisão humanas na preservação da integridade científica (Vasconcelos & Marušić, 2025) dos relatos construídos no âmbito da pós-graduação.
Fomentar o escrutínio e o pensamento crítico (Lee, H., et al., 2025) nesse ambiente continua sendo parte essencial de uma engrenagem complexa de produção e certificação de conhecimento, que experimenta uma reconfiguração profunda e desafiadora dos processos de construção autoral nos relatos de pesquisa, nas mais diversas áreas.
Notas
1. NATIONAL ACADEMIES OF SCIENCES, ENGINEERING, AND MEDICINE. Enhancing Scientific Reproducibility in Biomedical Research Through Transparent Reporting: Proceedings of a Workshop. Washington, DC: The National Academies Press. Available from: https://doi.org/10.17226/25627 ↩
2. FEYNMAN, R.P. Cargo cult science. Commencement address, California Institute of Technology. 1974. ↩
3. ALTMAN, D.G. and MOHER, D. Importance of transparent reporting of health research. In: MOHER, D., et al. (ed.) Guidelines for reporting health research: A user’s manual. Hoboken: John Wiley & Sons, 2014. ↩
4. MORAVCSIK, A. The Transparency Revolution in Qualitative Social Science: Implications for Policy Analysis. In: WIDNER, J., WOOLCOCK, M. and ORTEGA NIETO, D. (eds.) The Case for Case Studies: Methods and Applications in International Development. London: SAGE Publications, 2019. https://doi.org/10.1017/9781108688253.009. Available from: https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-core/content/view/3BAEF3DBD76BF8308A49560AD519F2C2/9781108427272c8_176-192.pdf/the-transparency-revolution-in-qualitative-social-science.pdf ↩
5. New Report Examines Reproducibility and Replicability in Science, Recommends Ways to Improve Transparency and Rigor in Research [online]. National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine. 2019 [viewed 04 September 2025]. Available from: https://www.nationalacademies.org/news/2019/05/new-report-examines-reproducibility-and-replicability-in-science-recommends-ways-to-improve-transparency-and-rigor-in-research ↩
6. GRANT, S., et al. Transparent, Open, and Reproducible Prevention Science. Prev Sci [online]. 2022, vol. 23, pp. 701–722 [viewed 04 September 2025]. https://doi.org/10.1007/s11121-022-01336-w. Available from: https://link.springer.com/article/10.1007/s11121-022-01336-w ↩
7. HORTON, R. The Hidden Research Paper. JAMA [online]. 2002, vol. 287, no. 21, pp. 2775–2778 [viewed 04 September 2025]. http://doi.org/10.1001/jama.287.21.2775. Available from: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/194969 ↩
8. MORAVCSIK, A. Transparency in qualitative research. London: SAGE Publications, 2019. http://dx.doi.org/10.4135/9781526421036. Available from: https://www.princeton.edu/~amoravcs/library/TransparencyinQualitativeResearch.pdf ↩
9. STELTENPOHL, C.N., et al. Rethinking Transparency and Rigor from a Qualitative Open Science Perspective. Journal of Trial and Error [online]. 2023, vol. 4, no. 1 [viewed 04 September 2025]. https://doi.org/10.36850/mr7. Available from: https://journal.trialanderror.org/pub/rethinking-transparency/release/1 ↩
10. KAPISZEWSKI, D. and KARCHER, S. Transparency in Practice in Qualitative Research. PS: Political Science & Politics [online]. 2020, vol. 54, no. 2, pp. 285–291 [viewed 04 September 2025]. https://doi.org/10.1017/S1049096520000955. Available from: https://www.cambridge.org/core/journals/ps-political-science-and-politics/article/transparency-in-practice-in-qualitative-research/8B780E06FBF7F0837F39B2FD33900DD1 ↩
11. BRENNER, P.S. and DELAMATER, J. Lies, damned lies, and survey self-reports? Identity as a cause of measurement bias. Social Psychology Quarterly [online]. 2016, vol. 79, no. 4, pp. 333–354 [viewed 04 September 2025]. https://doi.org/10.1177/0190272516628298. Available from: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0190272516628298 ↩
12. NOSEK, B.A., et al. Promoting an open research culture. Science [online]. 2015, vol. 348, no. 6242, pp. 1422–1425 [viewed 04 September 2025]. https://doi.org/10.1126/science.aab2374. Available from: https://www.science.org/doi/10.1126/science.aab2374 ↩
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