O surto de coronavírus (COVID-19) ressalta sérias deficiências na comunicação científica [Publicado originalmente no LSE Impact Blog em março/2020]

Por Vincent Larivière, Fei Shu e Cassidy R. Sugimoto

Imagem: Odra Noel.

As grandes crises frequentemente revelam as normas ocultas do sistema científico, tornando públicas as práticas conhecidas na ciência. O surto de coronavírus (COVID-19) expõe uma verdade inconveniente sobre a ciência: o atual sistema de comunicação científica não atende às necessidades da ciência e da sociedade. Mais especificamente, a crise manifesta duas ineficiências no sistema de pesquisa: o padrão para a ciência fechada e a ênfase excessiva na publicação elite, somente em inglês, independentemente do contexto e das consequências da pesquisa.

Em 31 de janeiro de 2020, o Wellcome Trust chamou o coronavírus de “ameaça significativa e urgente à saúde global”1 e apelou a “pesquisadores, periódicos e financiadores para garantir que os resultados de pesquisa e os dados relevantes para este surto fossem compartilhados rápida e abertamente para informar a resposta à saúde pública e ajudar a salvar vidas.”1 Os signatários desta declaração incluíram os principais publishers — como Elsevier, Springer Nature e Taylor & Francis — além de vários financiadores e sociedades científicas. Os signatários conjuntos desta declaração se comprometeram a abrir imediatamente todas as pesquisas e dados sobre o surto: em Repositórios de Preprints para os artigos que não haviam sido revisados pelos pares e em plataformas de periódicos para os artigos que já haviam sido submetidos à avaliação.

Este é um passo positivo, mas não vai longe o suficiente para atender às necessidades do público. Os artigos e capítulos de livros que foram liberados por esta medida representam apenas uma pequena proporção da literatura disponível sobre o coronavírus. Segundo o Web of Science (WoS), 13.818 artigos foram publicados sobre o tema dos coronavírus desde o final da década de 1960. Mais da metade (51,5%) destes artigos permanece fechada para acesso. O coronavírus é reconhecidamente uma grande família de vírus e pode-se questionar a relevância de trabalhos mais antigos para o surto atual. No entanto, como exemplo, os três artigos sobre COVID-19 publicados na edição de 15 de fevereiro do periódico Lancet se baseavam em 69 documentos distintos indexados pelo WoS, dos quais 73,2% estão no conjunto de 13.818 documentos sobre coronavírus. A referência mais antiga destes artigos é a de 1988, enfatizando o fato de que, embora o coronavírus possa ser novo, a pesquisa sobre o coronavírus, de fato, se baseia em uma longa cauda de literatura de pesquisa muito frequentemente fechada.

A inserção desta literatura científica em fluxos muito mais amplos de pesquisa também destaca as limitações desta abordagem. Os 13.818 artigos sobre coronavírus citam mais de 200.000 artigos – de virologia ao câncer e de saúde pública à genética e hereditariedade (Figura 1). Menos de um terço dos artigos citados dos quais os “artigos sobre coronavírus” extraíram informação e inspiração foram outros “artigos sobre coronavírus”. Mesmo que todos os artigos sobre o tema dos coronavírus fossem disponibilizados, isso ainda seria insuficiente para enfrentar a crise, considerando a inerente natureza interdisciplinar da pesquisa biomédica. A base de conhecimento da ciência é simplesmente muito mais ampla do que um único tópico. Ver a literatura através da lente estreita de artigos sobre coronavírus diretamente relevantes para o COVID-19 cega o esforço de pesquisa para outros trabalhos que poderiam ser cruciais. As curas para doenças geralmente vêm de novas combinações e insights de várias áreas de pesquisa. Se o objetivo da abertura da pesquisa é promover a ciência e servir à sociedade, toda a pesquisa deve ser aberta, não apenas uma parte dela.

Figura 1. Percentual de referências citadas pelos artigos sobre coronavírus, por especialidade dos periódicos citados. Classificação de campo e subcampo da NSF 1988-2018.

Os incentivos à publicação são outro elemento polêmico revelado pelo atual surto. Na última década, autoridades e instituições chinesas — como as de muitos outros países — ofereceram recompensas financeiras diretas com base no periódico em que os pesquisadores publicam, com um objetivo implícito de melhorar a posição de suas instituições nos rankings internacionais. Invariavelmente, publicar nestes periódicos implica em conformidade com a língua franca — inglês — e publicar tópicos importantes para os gatekeepers destes periódicos, que são desproporcionalmente provenientes dos países ocidentais. Embora a disseminação para a comunidade científica em geral seja um objetivo importante, ela não deve vir às custas da disseminação para as comunidades locais, particularmente aquelas com conexão direta ao tópico de estudo. Devido às paywalls e ao uso do inglês, os periódicos internacionais geralmente são inacessíveis para aqueles na linha de frente global de prestação de cuidados médicos e elaboração de políticas de saúde, especialmente em tempos de crise.

O atual surto de coronavírus exemplifica esta deficiência. No final de 2019, o Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças (CCDCP) enviou um grupo de especialistas a Wuhan para recuperar dados sobre o vírus. Isso ocorreu quase três semanas depois que o primeiro paciente apresentou sintomas e imediatamente após as notícias da transmissão entre humano nas mídias sociais por oito médicos de Wuhan (que foram posteriormente acusados pela polícia). Os pesquisadores analisaram os dados e enviaram os resultados – incluindo uma verificação da transmissão entre humano do vírus – para os mais prestigiosos periódicos ocidentais, The Lancet e o New England Journal of Medicine (NEJM), publicados em 24 e 29 de janeiro, respectivamente. Em 20 de janeiro, foi divulgada uma declaração pública, reconhecendo a transmissão do vírus de um ser humano para outro.

Figura 2. Número de artigos sobre vigilância de doenças publicados por pesquisadores chineses em periódicos internacionais (WoS) e em periódicos nacionais (CNKI). Após a epidemia de SARS em 2003, a importância da pesquisa em vigilância de doenças na China aumentou exponencialmente.

Em resposta, o governo chinês estipulou que os projetos financiados sobre coronavírus – incluindo os da nova iniciativa de US$ 1,5 milhão da Fundação Nacional de Ciência da China (NSFC) – deveriam ser publicados em periódicos locais da China e não em periódicos internacionais, e que a ênfase deveria ser para controlar o vírus e salvar vidas. Isso sugere um reconhecimento por parte do governo chinês de que o foco na publicação em periódicos de elite não é o modo mais rápido de disseminar resultados. Além disso, o Ministério da Educação (MoE) e o Ministério da Ciência e Tecnologia (MoST) emitiram uma declaração conjunta exigindo que as universidades e instituições de pesquisa limitem o uso de documentos do Science Citation Index do WoS (SCI), bem como indicadores relacionados (por exemplo, JIF, ESI, etc.) em avaliação de pesquisa. O MoE também estipulou que o número de artigos não pode ser usado como critério-chave para avaliar o desempenho da pesquisa e baniu o uso de políticas de pagamento-por-publicação. Todas estas iniciativas apontam para uma verdade subjacente: priorizar indicadores ao invés da entrega oportuna de resultados de pesquisas às comunidades relevantes não está no melhor interesse da sociedade.

Os signatários da declaração do Wellcome Trust concordam em seguir estes princípios não apenas para o surto atual, mas para todas as situações no futuro “em que haja um benefício significativo à saúde pública para garantir que os dados sejam compartilhados ampla e rapidamente”1. Esta afirmação faz uma ligação direta entre a saúde pública e o compartilhamento dos resultados de pesquisa: argumentar implicitamente que as paywalls e os embargos de periódicos impedem o avanço da ciência e, como resultado, são uma ameaça à saúde pública. No entanto, também levanta a questão: onde se traça a linha do que constitui um “benefício de saúde pública”? Nos últimos cinco meses, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos estimou que havia entre 18.000 e 46.000 mortes relacionadas à gripe. Não é verdade que se trata de um benefício para a saúde pública tornar pública a pesquisa neste tópico e todas as pesquisas que poderiam acelerar as descobertas em biomedicina e salve vidas?

Apelamos à comunidade científica – publishers, financiadores e sociedades – para que se mantenham fiéis à sua palavra. A declaração do Wellcome Trust é inequívoca: o compartilhamento rápido da pesquisa é necessário para informar o público e salvar vidas. Enquanto aplaudimos o trabalho que está sendo realizado em meio a esta crise, esperamos que este momento sirva como catalisador de mudanças. O governo Trump nos Estados Unidos, por exemplo, está considerando uma ordem executiva que tornaria todos os estudos financiados pelo governo federal livres para ser lidos na publicação. Da mesma forma, a coalizão de financiadores do Plano S exige que toda a pesquisa financiada seja publicada em periódicos de acesso aberto. Embora muitas agências de fomento adotem políticas de acesso aberto, a conformidade é variável e os embargos atualmente limitam o acesso imediato à pesquisa biomédica. Tanto a ordem executiva em potencial quanto o Plano S foram contestados por muitos dos signatários na declaração do Wellcome Trust. Esta é uma flagrante contradição.

Os signatários da declaração do Wellcome Trust devem estender os princípios para abranger todas as suas práticas: disponibilizar a pesquisa imediatamente e incentivar a comunicação científica a todas as partes interessadas. A resposta científica ao COVID-19 demonstrou alguns dos benefícios da abertura do sistema científico: incluindo a torrente de artigos sendo imediatamente compartilhados em servidores de preprints, a colaboração e discussão abertas de cientistas que usam plataformas de mídias sociais e o sequenciamento acelerado do genoma do vírus. No entanto, isso terá sido em vão se o sistema científico não mudar. É essencial reconhecer o que ficou claro neste momento de crise: um sistema científico robusto e uma cidadania informada requerem acesso público e imediato à pesquisa.

Nota

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Links externos

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Sobre Vincent Larivière

Vincent Larivière é professor de ciência da informação na Universidade de Montreal, onde ele ocupa a Canada Research Chair on the Transformations of Scholarly Communication. Ele também é diretor científico da Érudit e diretor científico associado do Observatoire des Sciences et des Technologies (OST-CIRST).

Sobre Fei Shu

O Dr Shu é pesquisador sênior da Chinese Academy of Science and Education Evaluation na Hangzhou Dianzi University; ele também trabalha na École de Bibliothéconomie et des Sciences de l’Information, na Universidade de Montreal como pesquisador associado. Sua pesquisa se concentra na bibliometria e na comunicação científica, especialmente no impacto das políticas científicas nas atividades de pesquisa.

Sobre Cassidy Sugimoto

Cassidy Sugimoto é Professora de Informática na School of Informatics, Computing, and Engineering na Indiana University Bloomington. Atualmente, ela também está temporariamente com a National Science Foundation como Diretora do Programa de Science of Science and Innovation Policy (SciSIP). A especialidade da pesquisa de Sugimoto está amplamente situada nos domínios da política científica, comunicação científica e cienciometria.

Artigo original em inglês

https://blogs.lse.ac.uk/impactofsocialsciences/2020/03/05/the-coronavirus-covid-19-outbreak-highlights-serious-deficiencies-in-scholarly-communication/

Traduzido do original em inglês por Lilian Nassi-Calò.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

LARIVIÈRE, V., SHU, F. and SUGIMOTO, C. O surto de coronavírus (COVID-19) ressalta sérias deficiências na comunicação científica [Publicado originalmente no LSE Impact Blog em março/2020] [online]. SciELO em Perspectiva, 2020 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2020/03/12/o-surto-de-coronavirus-covid-19-ressalta-serias-deficiencias-na-comunicacao-cientifica/

 

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