Colonialismo de Dados na Ciência: uma nova forma de dominação epistêmica

Por Fabiano Couto Corrêa da Silva

Introdução

A pergunta Quem controla seus dados?,1 título do e-book que inspira este post, tornou-se uma das questões mais urgentes da ciência contemporânea. Longe de ser um mero detalhe técnico, a governança dos dados que produzimos, coletamos e analisamos define as novas fronteiras do poder, da soberania e da própria produção de conhecimento. Neste contexto, emerge um conceito fundamental para compreender a dinâmica atual: o colonialismo de dados.

Este fenômeno, que estabelece paralelos profundos com o colonialismo histórico, descreve uma nova ordem global baseada na apropriação e extração de dados como matéria-prima, gerando assimetrias profundas entre aqueles que controlam as infraestruturas e os que são, essencialmente, fontes de dados. Para a comunidade científica, especialmente em espaços como a rede SciELO, que lutam pela democratização e descolonização do conhecimento, entender e enfrentar este desafio é uma tarefa inadiável.

Das Colônias Territoriais às Colônias de Dados: um paralelo histórico

O colonialismo histórico não se baseou apenas na dominação militar e econômica, mas fundamentalmente no controle da informação. Mapas, censos e registros etnográficos foram ferramentas essenciais para administrar territórios e populações, impondo uma lógica externa sobre realidades locais.

Hoje, testemunhamos um processo análogo, mas em uma escala e intensidade sem precedentes. A extração não é de recursos naturais, mas da própria vida, sistematicamente convertida em dados (dataficação). Como aponta o e-book, “vivemos um momento histórico singular, em que a própria natureza da existência humana está sendo reconfigurada por processos de dataficação que alcançam os aspectos mais íntimos da vida cotidiana.”1

Se os censos coloniais eram periódicos e limitados, a coleta digital é contínua e onipresente, operando 24/7 através de plataformas digitais, redes sociais e dispositivos inteligentes. As grandes corporações de tecnologia (Big Tech) assumem o papel de novas metrópoles, concentrando o poder de coletar, processar e monetizar esses dados, enquanto os indivíduos e comunidades, especialmente no Sul Global, tornam-se fontes de matéria-prima digital, raramente controlando ou se beneficiando dos resultados dessa extração.

Manifestações do Colonialismo de Dados na produção científica

Na ciência, este fenômeno se manifesta de formas concretas e preocupantes, ameaçando os ideais de uma comunidade científica global e equitativa:

  • Apropriação de Dados de Pesquisa: Plataformas acadêmicas e editoras comerciais, muitas sediadas no Norte Global, centralizam um volume massivo de artigos, dados de citação e métricas de impacto. Esses dados, produzidos por pesquisadores de todo o mundo, são então monetizados através de assinaturas, ferramentas analíticas e serviços, sem que os produtores originais (autores, instituições e financiadores) participem dos lucros ou da governança.
  • Desigualdades na Infraestrutura de Dados: A capacidade de armazenar, processar e analisar grandes volumes de dados (Big Data) exige recursos computacionais e financeiros concentrados em poucas instituições e países. Pesquisadores do Sul Global frequentemente enfrentam barreiras para acessar essas infraestruturas, limitando sua capacidade de competir em áreas de pesquisa intensivas em dados, como genômica, climatologia e inteligência artificial.
  • Dependência Tecnológica e Epistemológica: A dependência de softwares, algoritmos e plataformas desenvolvidos no Norte Global não é neutra. Essas ferramentas carregam consigo lógicas, vieses e pressupostos que padronizam as formas de fazer ciência, marginalizando epistemologias e metodologias locais. A agenda de pesquisa acaba sendo moldada pelos interesses e pelas tecnologias disponíveis, e não necessariamente pelas necessidades locais.

As dimensões do problema

O colonialismo de dados na ciência não é um problema unidimensional. Ele se desdobra em múltiplas esferas interdependentes:

  • Dimensão Econômica: A transformação de dados científicos em ativos econômicos cria um mercado desigual, onde o valor é extraído de muitos e acumulado por poucos.
  • Dimensão Epistêmica: A imposição de padrões e lógicas algorítmicas ameaça a diversidade do conhecimento, promovendo uma homogeneização que silencia formas plurais de saber.
  • Dimensão Política: A perda de controle sobre os dados de pesquisa representa uma ameaça direta à soberania científica e à autonomia das nações para definir suas próprias prioridades de pesquisa e desenvolvimento.

Conclusão: Por uma Soberania de Dados na Ciência

Enfrentar o colonialismo de dados exige mais do que apenas criticar as assimetrias existentes. É preciso construir alternativas concretas. A urgência deste debate reside na necessidade de desenvolver políticas e infraestruturas que garantam a soberania sobre os dados científicos, permitindo que pesquisadores, instituições e comunidades mantenham o controle sobre suas informações e se beneficiem do conhecimento gerado a partir delas. Este é um passo fundamental para a construção de um ecossistema científico verdadeiramente global, aberto e justo.

A questão “Quem controla seus dados?” não é retórica, mas um chamado à ação para que a comunidade científica, especialmente no Sul Global, reivindique seu direito à autonomia epistêmica e à soberania informacional. Somente assim poderemos avançar em direção a uma ciência que seja, de fato, democrática e descolonizada.

Posts da série sobre o livro Quem controla seus dados?

  • Colonialismo de Dados na Ciência: uma Nova forma de dominação epistêmica
  • Ciência Aberta entre Promessas e Paradoxos, democratização ou nova dependência?
  • Integridade Científica na era da IA: fraudes, manipulação e os novos desafios da transparência
  • Soberania de Dados Científicos nas tensões entre a Abertura Global e a Autonomia Local

Nota

1. SILVA, F.C.C. Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data. São Paulo: Pimenta Cultural, 2025 [viewed 07 November 2025]. https://doi.org/10.31560/pimentacultural/978-85-7221-474-2. Available from: https://www.pimentacultural.com/livro/quem-controla-dados/

Referência

SILVA, F.C.C. Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data. São Paulo: Pimenta Cultural, 2025 [viewed 07 November 2025]. https://doi.org/10.31560/pimentacultural/978-85-7221-474-2. Available from: https://www.pimentacultural.com/livro/quem-controla-dados/

 

Sobre Fabiano Couto Corrêa da SilvaFotografia de Fabiano Couto Corrêa da Silva

Fabiano Couto Corrêa da Silva é pesquisador em Ciência da Informação, com foco em Ciência Aberta, colonialismo de dados e soberania informacional. Atua na intersecção entre estudos pós-coloniais, teoria crítica da informação e governança de dados. É autor do livro Quem controla seus dados? Ciência Aberta, Colonialismo de Dados e Soberania na era da Inteligência Artificial e do Big Data (Pimenta Cultural, 2025). Seus trabalhos examinam assimetrias de poder na comunicação científica e propõem caminhos para uma ciência mais justa e democrática. Lidera o DataLab (Laboratório de Dados, Métricas Institucionais e Reprodutibilidade Científica), com ênfase em FAIR/CARE.

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

SILVA, F.C.C. Colonialismo de Dados na Ciência: uma nova forma de dominação epistêmica [online]. SciELO em Perspectiva, 2025 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2025/11/07/colonialismo-de-dados-na-ciencia-uma-nova-forma-de-dominacao-epistemica/

 

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