Por Luis Pérez-González
“O governo está seguindo a ciência” é uma das frases de efeito mais memoráveis que surgiram dos briefings diários da COVID-19 no Reino Unido. No entanto, à medida que a pandemia continua a se espalhar pelo mundo, os ministros foram confrontados com um ceticismo crescente sobre a eficácia de suas tentativas de combater a propagação da pandemia e com raiva crescente devido ao preço econômico de políticas baseadas na ciência, que parecem priorizar a saúde pública sobre os empregos. Tensões impulsionadas por julgamentos de valores conflitantes estão se tornando mais aparentes a cada dia.
Contra este pano de fundo de crescente descontentamento social, as aparições de ministros na mídia munidos de quantidades de dados, onde muitas vezes são acompanhados por consultores científicos, se tornaram uma plataforma importante para negociar a confiança pública. Ao reabilitar especialistas perante o público, políticos estão capitalizando o conhecimento especializado para afirmar a legitimidade de suas políticas, ao mesmo tempo que retêm a capacidade de se esquivar da responsabilidade e transferir a culpa quando o público, por exemplo, questiona a qualidade da base científica para restrições.
A política da expertise em ciência do clima
O surgimento da epidemiologia como um local de confronto público não é sem precedentes. Visões conflitantes sobre como administrar a compensação entre a economia e a saúde pública, ou a possibilidade de fortalecer as regulamentações da atividade de lobby por partes interessadas e grupos de interesse, há muito contribuem para transformar a ciência do clima em um tópico de polarização ideológica e política. Estes dois domínios científicos contestados ilustram, em última análise, o impacto que as mudanças nas políticas de especialização estão tendo sobre a produção de evidências técnico-científicas.
Durante décadas, as partes interessadas políticas e corporativas do lado cético do debate sobre o clima animaram a controvérsia sobre a formulação de políticas ambientais de maneiras variadas e ousadas. Em vez de seguir a ciência, eles selecionaram e transformaram em armas evidências científicas para sustentar suas narrativas, com alguns chegando a intervir no processo de criação do conhecimento, investindo seletivamente em pesquisas que atendam a seus interesses políticos e econômicos.
Da mesma forma, um movimento em nova direção para o conhecimento ativista em uma gama de movimentos sociais empoderou cidadãos comuns a intervir no debate da ciência do clima, reivindicando o reconhecimento do saber fundamentado e baseado na experiência que acumularam ao longo do tempo. A percepção de que o conhecimento científico não pode ser dissociado das circunstâncias que cercam sua construção tem contribuído para democratizar a ciência do clima e estender sua participação na formulação de políticas ambientais além do controle de cientistas credenciados.
Ciência baseada em blogs ou blogs baseados em ciência
A blogosfera é uma das arenas onde a contestação do conhecimento sobre clima, a (des)legitimação de formas tradicionais de expertise e a articulação de traduções alternativas de evidências em políticas públicas estão ocorrendo. Meu estudo publicado recentemente sobre a blogosfera anglófona do clima1 se baseia em um corpus de blogs que reflete a natureza multifacetada do debate sobre mudanças climáticas e inclui material produzido a partir de uma variedade de perspectivas concorrentes, não se limitando aos polos “alarmista” e “negacionista”.
No meu estudo1, blogs postados por uma série de autoproclamados especialistas australianos em ciência do clima, defensores do método científico tradicional e lobistas dos EUA que confessam “brincar de cientistas” são categorizados como sendo contrários às mudanças climáticas. Sua ciência baseada em blog se propõe a desafiar o consenso científico incorporado nos relatórios do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) e nas políticas nacionais decorrentes das recomendações do painel.
Aqueles que aceitam as mudanças climática incluídos em minha amostra de blogs de base científica apresentam jornalistas e pesquisadores britânicos que buscam combater a desinformação sobre mudanças climáticas “baseadas em fatos e evidências concretas”. Significativamente, minha amostra de vozes complacentes também inclui aquelas de cientistas credenciados nos Estados Unidos que buscam montar um desafio contra a interferência da administração Trump na produção e comunicação da ciência do clima.
No contexto do meu estudo, a ciência baseada em blogs é o trabalho de membros do público com consciência científica que se esforçam para desafiar a tomada de decisão tecnocrática por cientistas de consenso ou “aquecimentistas”. Os blogueiros baseados na ciência, por outro lado, visam expor o lobby e girar em torno das mudanças climáticas e outras questões ambientais. Especificamente, cientistas credenciados escrevem em blogs para manter o controle sobre o conhecimento sobre o clima que circula na arena pública, impulsionados por sua percepção de que a grande mídia anglófona dá às vozes céticas uma cobertura mais proeminente do que seria garantido pelo peso das evidências que sustentam suas afirmações.
O papel dos valores na ciência baseada em blogs
Minha análise – que enfoca nos termos usados pelos blogueiros como “viés”, “dogma” e “revisão por pares” – descobriu que a ciência baseada em blogs tenta minar o consenso científico dominante chamando a atenção para o que eles percebem como o alinhamento deste último com políticas institucionais, interesses corporativos ou agendas de esquerda em conflito com os interesses nacionais.
Em canais inconformistas, a mudança climática é combinada com “dogma”. Suas narrativas afirmam que uma crença única e inquestionável se apoderou da ciência do clima, em detrimento do escrutínio crítico. Além disso, eles enquadram o uso da ciência pelos principais especialistas em mudanças climáticas como um manto para esconder as falhas de seu dogma – muitas vezes referindo-se à ciência credenciada do clima como “dogma ciência” ou o “dogma da ciência estabelecida”.
Em suas postagens, blogueiros inconformistas enquadram os “vieses inerentes” da ciência consensual como falhas orientadas por valores. Em vez de apontar falhas específicas de procedimento na produção e avaliação do conhecimento sobre mudanças climáticas, os blogueiros inconformistas optam por condenar a “politização da ciência de consenso” – onde os valores moldam o processo de pesquisa desde seus estágios iniciais.
Para o conjunto inconformista, o dogma da mudança climática é politizado e não se presta a escrutínio; exige ser aceito como verdade incontestável e se opõe à pesquisa científica que contradiz este dogma. Em última análise, os cientistas consensuais que subscrevem o dogma da mudança climática ficam, portanto, “cegos” e submetidos à sua “lavagem cerebral”.
Em contraste, o termo “dogma” dificilmente ocorre em meu conjunto de dados de blogs de base científica por aqueles que aceitam as mudanças climáticas. Quando isso ocorre, o faz como parte de declarações de vozes autoritárias inconformistas que são citadas literalmente por jornalistas que lutam contra a desinformação sobre as mudanças climáticas.
Meu estudo destaca as implicações deste foco nos valores para as percepções públicas da ciência da mudança climática e outras áreas emergentes de controvérsia de evidências. Ele apoia pesquisas em andamento dentro de estudos de formulação de políticas públicas sobre a contribuição potencial que modelos científicos carregados de valor podem dar à governança ambiental.
Uma reformulação pragmática da elaboração de políticas informadas por valores bipartidários pode revelar-se uma intervenção eficaz no debate público, sem inflamar ainda mais o debate sobre a ciência do clima. Ela poderia desempenhar um papel semelhante ao informar os debates cada vez mais turbulentos entre saúde versus economia e liberdade versus bem comum.
Nota
1. PÉREZ-GONZÁLEZ, L. ‘Is climate science taking over the science?’: A corpus-based study of competing stances on bias, dogma and expertise in the blogosphere. Humanities and Social Sciences Communications [online]. 2020, vol. 7, no. 1. [viewed 18 November 2020]. http://doi.org/10.1057/s41599-020-00582-z. Available from: https://www.nature.com/articles/s41599-020-00582-z
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Links externos
DeSmog UK: https://www.desmog.co.uk/
Luis Pérez-González: http://luisperezgonzalez.org/
Twitter – Luis Pérez-González: https://twitter.com/LuisPerezGonz11
Union of Concerned Scientists: https://www.ucsusa.org/
Sobre o autor
Luis Pérez-González é Professor de Estudos Translacionais e codiretor do Centre for Translation and Intercultural Studies na Universidade de Manchester, Reino Unido. De 2016 a abril de 2020, ele foi pesquisador no projeto subsidiado pelo AHRC intitulado Genealogias do Conhecimento: A Evolução e Contestação de Conceitos através do Tempo e Espaço.
Artigo original em inglês
Traduzido do original em inglês por Lilian Nassi-Calò.
Como citar este post [ISO 690/2010]:
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