Produção científica indígena: línguas originárias e auto identificação étnica nos Repositórios Institucionais

Por Luciana Gracioso, Caroline Periotto, Felipe Arakaki, Luzia Costa, e Jair de Jesus Massa (Desana)

Fotografia de Lennon Ferreira Corezomaé (Umutina Bala Tiponé), primeiro indígena a concluir o mestrado na UFSCar, em cerimônia de formatura. Uso da imagem autorizada por Lennon Ferreira Corezomé.

Imagem: Lidiane Volpi/UFSCar (uso autorizado)

Durante a Assembleia Geral das Nações Unidas de 2019, foi proclamada a Década Internacional das Línguas Indígenas (2022–2032), evidenciando a urgência da formulação de políticas públicas voltadas ao reconhecimento, valorização e preservação das línguas originárias em âmbito global. No Brasil, essa diretriz internacional repercutiu na criação, em 2021, de um Grupo de Trabalho (GT) nacional sobre o tema.

Em 10 de abril de 2025, representantes dos povos indígenas e membros deste GT reuniram-se na Tenda Multi Temas, durante o encontro chamado “Levante das Línguas Indígenas para o Futuro Ancestral”, ocasião em que foi elaborada a Carta da Década Internacional das Línguas Indígenas no Brasil no ATL 2025,1 documento que explicita os compromissos assumidos coletivamente em defesa da diversidade linguística.

Esse movimento adquire especial relevância no Brasil, país que abriga uma das maiores diversidades linguísticas do mundo, com mais de 270 línguas indígenas ainda vivas, faladas por cerca de 305 povos distintos. Apesar dessa riqueza, as línguas indígenas seguem fortemente impactadas pelos efeitos simbólicos e estruturais do colonialismo, o que compromete sua visibilidade pública e sua legitimidade epistemológica e institucional.

Embora a Constituição Federal de 1988 (Art. 231) reconheça os direitos linguísticos dos povos indígenas, os avanços concretos nesta área foram historicamente lentos e pontuais. Apenas nos últimos anos começaram a emergir ações mais sistemáticas, como a criação do Repositório Brasileiro de Legislações Linguísticas (RBLL) e a tradução da Constituição Federal para o Nheengatu, uma das línguas cooficiais já reconhecidas em âmbito local. Ainda assim, menos de uma dezena dos mais de cinco mil municípios brasileiros reconhecem oficialmente uma língua indígena como cooficial.

Outro avanço recente é o direito ao registro de nomes indígenas, garantido pela Resolução Conjunta nº 3/2012 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)2 e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que autoriza os cartórios a registrarem nomes em línguas indígenas, com a possibilidade de incluir a etnia de origem, tanto em registros de nascimento quanto em processos de retificação. Com a atualização pela Resolução nº 12/2024,3 essas possibilidades foram ampliadas e simplificadas, garantindo maior respeito à identidade e cultura dos povos indígenas.

Diante desse contexto, torna-se imprescindível que os sistemas acadêmicos também incorporem esses avanços, garantindo que pesquisadores indígenas sejam reconhecidos por seus nomes originários e que suas produções científicas possam ser representadas a partir das línguas e das cosmologias de seus respectivos povos.

É nesse cenário que se insere a pesquisa aplicada e experimental aqui apresentada, desenvolvida na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com o objetivo de criar e implementar campos específicos de metadados no Repositório Institucional da Universidade. A iniciativa visa assegurar que a produção científica indígena, em evidente crescimento no ensino superior brasileiro, seja representada com fidelidade, respeitando seus modos próprios de autoria, expressão e enunciação.

A proposta está em consonância com os Princípios CARE4 (Collective Benefit, Authority to Control, Responsibility, Ethics), que orientam a Governança de Dados Indígenas, conforme estabelecido pela Global Indigenous Data Alliance. Esses princípios buscam promover práticas de gestão de dados mais éticas, responsáveis e sensíveis às especificidades das comunidades indígenas.

Como resultado da pesquisa, foi criado um campo específico para a indicação da etnia ou povo de pertencimento dos estudantes indígenas autores. Além disso, os demais campos do Repositório foram atualizados com orientações que viabilizam a inserção de metadados em línguas indígenas. No campo de autoria, também foi reforçada a possibilidade de incluir múltiplos autores indígenas, respeitando a coautoria coletiva e os modos próprios de produção do conhecimento.

A inclusão e ajustes dos campos foi inicialmente testada em caráter experimental, revelando-se tecnicamente viável e relevante para ampliar a visibilidade e o reconhecimento das línguas e autorias indígenas no ecossistema científico. Finalizada a fase de testes, os novos metadados estão sendo efetivamente incorporados ao Repositório em 2025, consolidando-se como mecanismo de registro da produção científica indígena.

Importa ressaltar que essa construção resulta da reivindicação da própria comunidade acadêmica indígena da UFSCar. Desde 2008, a UFSCar realiza anualmente um processo seletivo específico para o ingresso de estudantes indígenas, oferecendo uma vaga adicional em cada curso de graduação. A entrada desses estudantes na Universidade faz parte das ações afirmativas instituídas pela UFSCar, conforme decisão do Conselho Universitário em 2007, e está regulamentada pela Portaria GR nº 695/07,5 de 6 de junho de 2007.

Desde então já passaram pela UFSCar estudantes indígenas de mais de 60 etnias distintas, nos diferentes cursos de graduação e pós-graduação da instituição. Em 2023, a Universidade registrou número recorde de inscrições neste vestibular (3.480 candidatos para 130 vagas) e, atualmente, conta com cerca de 300 estudantes indígenas com matrícula ativa na graduação, distribuídos em diferentes cursos e campi.

Destaca-se, ainda, que a Política de ações Afirmativas na Pós-Graduação — UFSCar implementadas respectivamente em 2016 e 2020, tem contribuído significativamente para a presença indígena nesse nível de formação. Esses números refletem o avanço das políticas públicas de democratização do ensino superior e da ciência no Brasil, impulsionadas por marcos como a Lei nº 12.711/2012 e por ações institucionais específicas de acesso e permanência.

O crescimento da produção científica indígena configura-se, assim, como desdobramento direto dos processos de inclusão e afirmação étnico-racial no ensino superior. Tal cenário exige dos sistemas de informação acadêmicos uma postura proativa na formulação de estratégias adequadas para a representação, o arquivamento e a disseminação dessas produções. Trata-se de um passo essencial para que o campo científico reconheça e valorize, não apenas os aportes intelectuais indígenas, mas também os seus modos próprios de nomear, narrar e construir o conhecimento.

A seguir, apresentam-se as ampliações realizadas nos metadados do Repositório Institucional da UFSCar.

Campo Dublin Core Nome do Campo Descrição do Campo
dc.contributor.authorethnicity Etnia/Povo do autor

(inclusão do campo)

Quando houver, informe a etnia/povo do autor (sem abreviações). Utilize letras maiúsculas apenas no início das palavras. Ex.: “Xukurú do Ororubá”. Você pode incluir mais de uma etnia/povo. Para isso, clique no botão “+ Adicionar mais”.
dc.contributor.author Autor

(adequação da descrição de preenchimento do campo)

Informe o nome completo do autor (sem abreviações). Utilize letras maiúsculas somente nas iniciais de nomes e sobrenomes. No caso de nome social ou nome indígena, utilize o nome como consta nos Sistemas UFSCar. Você pode incluir mais de um autor, para isso, clique no botão “+ Adicionar mais”.
dc.description.abstract Resumo em outro idioma (adequação da descrição de preenchimento do campo) Informe o resumo do trabalho acadêmico em outro idioma. Você pode incluir mais de um resumo em outro idioma. Se foi informado no campo anterior o resumo em português, informe neste campo o resumo em inglês, espanhol, língua indígena etc. Para isso, clique no botão “+ Adicionar mais”.
dc.subject Palavras-chave

(adequação da descrição de preenchimento do campo)

Informe as palavras-chave em português e em outros idiomas. Utilize letras maiúsculas apenas no início das palavras e em siglas. Para adicionar uma nova palavra-chave, clique no botão “+ Adicionar mais”.
dc.title.alternative Título em outro idioma

(adequação da descrição de preenchimento do campo)

Informe o título e o subtítulo em outro idioma. Se foi informado no campo anterior o título em português, informe neste campo o título em inglês, espanhol, língua indígena, etc. Você pode incluir mais de um título em outro idioma, para isso, clique no botão “+ Adicionar mais”.

Fonte: Os autores.

Quadro 1. Criação e descrição dos campos para representação da língua indígena na produção científica dos/as autores/as indígenas

 

Na interface do Repositório, o registro do resumo em língua indígena, se apresenta da seguinte maneira.

 

Print screen da página do Repositório Institucional da Universidade Federal de São Carlos, mostrando o trabalho de conclusão de curso "Relatos e narrativas A'uwe Xavante em diálogo com a Educação Especial" com resumo em língua indígena

Imagem: RI UFSCar

Figura 1. Exemplo de interface de registro de resumo e palavras-chave em língua indígena no RI UFSCar

 

Na página do item completo, também é possível observar a inclusão das palavras-chave e do título em língua indígena.

 

Print screen da página do Repositório Institucional da Universidade Federal de São Carlos, mostrando os metadados completos do trabalho de conclusão de curso "Relatos e narrativas A'uwe Xavante em diálogo com a Educação Especial" em português e língua indígena

Imagem: RI UFSCar

Figura 2. Metadados na língua indígena na página do item completo no RI UFSCar

 

Atualmente, o Departamento de Produção Científica do Sistema Integrado de Bibliotecas (DePC/SIBi) da UFSCar tem desenvolvido iniciativas voltadas à orientação da comunidade acadêmica quanto ao depósito adequado das produções científicas de estudantes e pesquisadores indígenas.

Essa iniciativa reafirma a urgência de reconhecermos as línguas originárias e as etnias das autorias indígenas como dimensões centrais na representação do conhecimento científico originário. Mais do que categorias informacionais, se tratam de expressões vivas de saberes, territórios e existências que precisam ser plenamente visibilizadas, legitimadas e respeitadas nos sistemas acadêmicos. É por meio dessa valorização que a ciência pode, de fato, se tornar plural, inclusiva e comprometida com a justiça epistêmica.

Mais informações sobre esta atividade podem ser conferidas no artigo completo:

PERIOTTO, C., et al. Organization and Representation of Indigenous Scientific Production: A Case Study on the Institutional Repository in Brazil. Knowledge Organization [online]. 2025, vol. 51, no. 8, pp. 642 – 659 [viewed 6 June 2025]. https://doi.org/10.5771/0943-7444-2024-8-642. Available from: https://www.imrpress.com/journal/KO/51/8/10.5771/0943-7444-2024-8-642

Notas

1. Carta Aberta GT Nacional das Línguas Indígenas no ATL 2025 [online]. Década das Línguas Indígenas no Brasil. 2025 [viewed 6 June 2025]. Available from: https://www.decadalinguasindigenasbr.com/carta-da-decada-internacional-das-linguas-indigenas-no-brasil-no-atl-2025/

2. Resolução conjunta no 3, de 19 de abril de 2012

3. Resolução conjunta nº 12 de 13 de dezembro de 2024

4. CARE Principles for Indigenous Data Governance

5. Legislação Institucional — Programa de Ações Afirmativas da UFSCar

Referências

Carta Aberta GT Nacional das Línguas Indígenas no ATL 2025 [online]. Década das Línguas Indígenas no Brasil. 2025 [viewed 6 June 2025]. Available from: https://www.decadalinguasindigenasbr.com/carta-da-decada-internacional-das-linguas-indigenas-no-brasil-no-atl-2025/

Considerações e sugestões relativas a portaria no. 13 do MEC que dispõe sobre indução de ações afirmativas na pós-graduação [online]. Universidade Federal de São Carlos. 2016 [viewed 6 June 2025]. Available from: https://www.saade.ufscar.br/arquivos/minuta-2016-inducao-acoes-afirmativas-na-pos-graduacao.pdf

PERIOTTO, C., et al. Organization and Representation of Indigenous Scientific Production: A Case Study on the Institutional Repository in Brazil. Knowledge Organization [online]. 2025, vol. 51, no. 8, pp. 642 – 659 [viewed 6 June 2025]. https://doi.org/10.5771/0943-7444-2024-8-642. Available from: https://www.imrpress.com/journal/KO/51/8/10.5771/0943-7444-2024-8-642

Política de ações Afirmativas na Pós-Graduação [online]. Universidade Federal de São Carlos. 2020 [viewed 6 June 2025]. Available from: https://www.saade.ufscar.br/arquivos/politica-de-acoes-afirmativas-pos-graduacao.pdf

Links externos

CARE Principles for Indigenous Data Governance

Legislação Institucional — Programa de Ações Afirmativas da UFSCar

Repositório Brasileiro de Legislações Linguísticas (RBLL)

Resolução conjunta nº 12 de 13 de dezembro de 2024

Resolução conjunta no 3, de 19 de abril de 2012

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

GRACIOSO, L., et al. Produção científica indígena: línguas originárias e auto identificação étnica nos Repositórios Institucionais [online]. SciELO em Perspectiva, 2025 [viewed ]. Available from: https://blog.scielo.org/blog/2025/06/06/producao-cientifica-indigena/

 

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